André Freire: Onde está o reformismo de esquerda do PS?(I)
Onde está o reformismo de esquerda do PS?(I)
André Freire, jornal PÚBLICO, 16-10-06
(Professor de Ciência Política - ISCTE)
(Professor de Ciência Política - ISCTE)
Sobre o próximo Congresso do PS, Sócrates escreveu "Não há hoje, no PS, um problema de identidade, nem de definição doutrinária ou ideológica. (...) (Expresso, 2/9/06)." Vale a pena discutir isto analisando algumas orientações políticas fundamentais do governo.
A questão da igualdade está no âmago da divisão entre esquerda e direita: a primeira é, pelo menos tendencialmente, mais igualitária do que a segunda. Porventura, mais do que inigualitárias, as direitas têm horror ao voluntarismo político para corrigir as desigualdades. Claro que sempre houve diferenças entre as esquerdas sobre as questões da igualdade, mas nenhuma das suas correntes abandonou a ideia de igualdade como questão central do seu ideário. E seria lógico esperar que a questão das desigualdades tivesse um relevo acrescido para a(s) esquerda(s) do país com as maiores diferenças de rendimento da UE25: Portugal (PNUD, 2005).
Sabemos que, seja por causa das tendências demográficas e do fraco crescimento económico, seja por causa dos compromissos europeus e da competição internacional, são necessários ajustamentos dolorosos para promover o equilíbrio das contas públicas e a sustentabilidade futura do Estado Social.
Mas uma questão central que se coloca é qual é o nível de equidade na distribuição dos custos com tais ajustamentos. Defendi num artigo desta coluna, "As velhas desigualdades e a nova luta de classes" (6/6/06), que os ajustamentos que o governo tem vindo a promover têm afectado sobretudo os assalariados, fundamentalmente os do sector público, nomeadamente as classes médias. Pelo contrário, os contribuintes faltosos e, sobretudo, os detentores de capital têm sido relativamente poupados (excepto em sede de IVA e afins). De então para cá a situação pouco mudou. Refira-se apenas que, entretanto o governo avançou com a publicação das listas de devedores ao fisco e à segurança social. São medidas a saudar. Porém, trata-se apenas de instrumentos de dissuasão, os quais poderão ter uma eficácia muito limitada num país onde a ética de cumprimento dos deveres de cidadania, sobretudo fiscais, é o que é. Mas uma das medidas que alguns especialistas (Silva Lopes em Desafios para Portugal, 2005, p. 91) consideram mais eficaz no combate à evasão fiscal (o fim do sigilo bancário), e que em 2005 o PS se propunha decidir em seis meses, ainda não foi decidida passado um ano e meio. Pior: neste Verão o governo propôs que o sigilo bancário fosse quebra apenas para quem reclama junto do fisco... E dando um sinal absolutamente errado quanto ao exercício dos direitos de cidadania (ver o excelente artigo de Paulo Rangel neste jornal, 19/07/06). Parece que há diligências em curso entre parlamentares do PS, do PSD e do BE que poderão vir a permitir a alteração de tão tortuosa proposta do governo... (PÚBLICO, 13/10/06). Oxalá!
Mas as áreas onde as desigualdades na distribuição dos custos dos ajustamentos (entre trabalho e capital) são mais evidentes são as da Segurança Social e da tributação fiscal. Na primeira, a reforma acordada com o patronato e a UGT faz recair todos os custos sobre os assalariados, isentando quase completamente as empresas. Em matéria fiscal, em 2005 o PS tinha-se proposto acabar com os benefícios fiscais injustificados e que contrariassem a equidade global do sistema. Porém, o Jornal de Negócios de 30/6/06 anunciava que os benefícios fiscais que o Executivo se prepara para cortar são os relacionados com a educação, ou seja, aqueles que afectam sobretudo os assalariados. O patronato e a direita alegam geralmente que o que é preciso é descer os encargos sociais e fiscais das empresas por causa da sua competitividade. Porém, ainda recentemente o DN (13/10/06) revelava que as taxas nominais de IRC em Portugal (28,0 por cento) estão abaixo da UE15 (29,5 por cento). Embora estejam ligeiramente acima da UE25 (27,0 por cento) e algo acima de alguns países da Europa de Leste. Mas não era o PS que se propunha alicerçar a competitividade do país na qualificação dos portugueses e na inovação cientifica e tecnológica? Neste domínio, as medidas efectivas apontam mais para a redução dos custos com o factor trabalho e a redistribuição. Mais: as taxas nominais de IRC são muito enganadoras porque em Portugal os benefícios fiscais são muito elevados e, por isso, as taxas efectivas eram as mais baixas da UE15 (1996-01), exceptuando a Irlanda (praticamente ex-aequo connosco) (Silva Lopes, Ibidem, p. 100). Refira-se ainda que, em 2004, a carga fiscal portuguesa em percentagem do PIB (34,5 por cento) estava abaixo da UE15 (40,2) e da UE25 (39,3) (DN, 18/5/06). E, embora ligeiramente acima da média dos oitos países ex-comunistas (33,5), estava abaixo da República Checa (36,8), da Hungria (39,1) e da Eslovénia (39,7). Contudo, segundo um estudo divulgado em Maio passado ("Dia da Libertação de Impostos"), em Portugal são preciso 21 e 11 dias de trabalho por ano para pagar o IRS e o IRC, respectivamente. E temos assistido recorrentemente a lucros exponenciais de várias empresas: por exemplo, em 2005 os lucros dos bancos aumentaram 30% (DN, 11/6/06). Há vários outros casos!
Por tudo isto, é incompreensível que os detentores de capital tenham sido tão pouco chamados a participar nos esforços de ajustamento que afectam os restantes portugueses. Portanto, para usar os termos de Adam Przeworski, em matéria de redução das diferenças entre capital e trabalho o PS parece ter passado do "reformismo" à "resignação". Dito de outro modo, o Executivo evidencia muita determinação, urgência e músculo com os assalariados, e muita lentidão e tibieza perante os mais poderosos economicamente (e os contribuintes faltosos). Se isto não representa um reposicionamento ideológico, então o que é? E, ao contrário do que as sondagens parecem sugerir, poderá ter significativos impactos (no médio e longo prazo)...
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