Inauguração do monumento comemorativo do centenário de nascimento de Miguel Torga
Intervenção de Manuel Alegre
Não sei se quando Torga se debruçava sobre o Mondego olhava apenas as suas águas. Talvez se debruçasse sobre os grandes rios do Mundo e os outros, mais obscuros e profundos, da sua imaginação. Ou talvez se debruçasse sobre si mesmo, sobre as perguntas que constante e dolorosamente se fazia e constituem o cerne da sua escrita.
Creio, aliás, que era assim que ele entendia a literatura: uma arte de perguntar, mesmo que não se encontre a resposta. O que o levaria a confessar: “Chego ao fim perplexo diante do meu próprio enigma.”
Este monumento é, de certo modo, uma metáfora da obra de Torga. Assim como Agarez / S. Martinho é um local mítico, “o local sem paredes”, que a poeta definia como sendo o universal, também a janela do consultório na Portagem é, ao fim e ao cabo, uma janela de Coimbra para Portugal e para o Mundo, o seu e nosso Portugal, o seu e nosso Mundo. Porque o eu de Torga – e poucos poetas foram tão fundo dentro de si mesmos – sendo um eu singular e único é, ao mesmo tempo, um eu que somos nós. Nem foi por acaso que ele escreveu: “Portugal. Foi a procurar entendê-lo que compreendi alguma coisa de mim.”
Sim, creio que Miguel Torga, olhando as águas do Mondego, ouvia o rumor dos rios subterrâneos que corriam dentro de si, os rios secretos que trazem o mistério, a magia, as metáforas, os duendes, os anjos e as musas da poesia. Ou talvez ouvisse a música de Sôbolos rios que vão, o incomparável poema de Camões. Ouvia com certeza os rios das vogais e consoantes da língua portuguesa que, segundo ele, “é uma língua dúctil, maleável, de virtualidades infindas”, que em todas as latitudes e longitudes se dá bem. Ouvia o bater da terra e o ritmo do mar e o apelo das suas raízes sem fronteiras. “Sou um português hispânico. Nasci numa aldeia trasmontana, mas respiro o ar peninsular. Cioso da minha pátria cívica, da sua independência, da sua História, da sua singularidade cultural…” Sentia-se bem a pisar terra espanhola e, segundo Pilar Vasquez Cuesta, foi “provavelmente o escritor português que mais se preocupou com o anguloso e difícil perfil espiritual de Espanha.” Torga era um português que segundo o seu próprio dizer gostava de se sentir galego, castelhano, andaluz, catalão, asturiano ou vasconso, “nas horas complementares do instinto e da mente.” Mas foi também ele que desabafou: “Meu pobre Portugal, a resistir há oitocentos anos às seduções de uma Espanha irresistível. Enfrentar tal sereia, sem cair na tentação de lhe cair nos braços, é realmente façanha digna de respeito e de enternecimento.” Palavras que é importante sublinhar nesta hora em que há quem vaticine a dissolução desta Nação de tantos séculos. Torga sabia quem era e ensinou-nos e “nunca descrer / do chão duro e ruim.” “Todos os Alcácer-Quibir e todas as Aljubarrotas estão em mim. Descobri mundos e ando repartido por eles. Tenho oitocentos anos de idade e pareço uma criança.”
Sentado no seu consultório do Largo da Portagem, Torga era um cidadão do mundo. Viajava pela história do passado, anotava a do presente e às vezes adivinhava a do futuro. Cidadão do mundo, contemporâneo do seu tempo e também do tempo ainda por vir. Mas não um falso cosmopolita parolo e novo-rico.
Seria, aliás, em Coimbra, no primeiro comício aqui realizado pelo Partido Socialista, em que tomou a palavra como independente, que Miguel Torga deixaria clara a sua posição contra o velho provincianismo mental de copiar modas alheias. “Cada nação tem um rosto inconfundível. A nossa, felizmente, não foge à regra. É precisamente ao povo que pertence a glória de, contra tudo e contra todos, lhe ter mantido intactos, através dos tempos, os traços significativos. Teria perdido qualquer ressonância em nós a obra de Fernão Lopes, de Gil Vicente e de Camões, se eles não fossem arautos inspirados dessa rude tenacidade que resistiu triunfantemente à secular acção corrosiva de senhores, inquisidores e mercadores.”
O quotidiano de Miguel Torga faz parte dos itinerários e da vida da cidade de Coimbra. Um quotidiano que, pela grandeza do poeta, se foi pouco a pouco transformando em lenda. O eléctrico de Celas onde pela primeira vez o vi, mais tarde o trolley, os passeios pela Avenida Dias da Silva com Clara, ainda pequenita, pela mão, a sua alta silhueta pela Rua Ferreira Borges, a passagem pela Brasileira e pelas livrarias, as idas à farmácia para um breve conversa com João Fernandes, as caminhadas pelo Parque, os encontros com Fernando Valle, a obsessiva revisão de provas para exasperação do Padre Valentim, as caçadas às narcejas, às galinholas, aos patos e às codornizes nos campos do Mondego, o ritual aparecimento à janela do consultório em dia de cortejo da Queima das Fitas, a presença, acompanhado pela Dr.ª Andrée, em certas sessões de cinema ou de teatro, no Avenida, enfim, a sua íntima vivência da cidade dia a dia anotada no Diário, a par dos pequenos e grandes acontecimentos do país e do mundo.
Em Coimbra pertenceu à revista Presença e dela foi dissidente. Conviveu ou correspondeu-se com as grandes figuras literárias do século XX, como, entre outros, Fernando Pessoa, Afonso Duarte, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner. Mas nunca foi um alinhado. Foi sempre ele próprio, Orfeu rebelde, insubmisso e intransigente perante todas as formas de arregimentação.
“Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar.”
Esse foi o seu poder. O de recusar a tirania, a mentira, os compadrios e a facilidade. Sendo moderno, Torga é muito antigo. Mas está aquém e além da questão suscitada recentemente por Eduardo Lourenço sobre se não entrou ou não quis entrar na modernidade ou se entrou, como dizia Ortega de Unamuno, às arrecuas. Torga está aquém e além desse tipo de especulação pela razão simples de que é um clássico. E foi assim que ele entrou, de frente, na história da literatura. Não o venceram em vida e não o vencerão depois da morte. Ele é e será sempre uma referência de Portugal, da literatura e da liberdade.
Miguel Torga teria por certo gostado que este local ficasse assim assinalado. Parabéns à Câmara e aos autores. É mais um “local sem paredes”, um símbolo da sua Coimbra e da dimensão universal da sua obra tão inigualavelmente portuguesa.
Foz do Arelho. Agosto de 2007
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