A coragem de mudar
Intervenção de Manuel Alegre na Aula Magna no Encerramento do Fórum "Democracia e Serviços Públicos"
Saúdo os meus colegas nesta sessão de encerramento.
Saúdo os oradores e moderadores dos debates que hoje se realizaram.
É possível debater ideias sem dogmas, sem sectarismos e sem demagogia. Isso só não é possível para quem não pratica a democracia.
Amigos, companheiros e camaradas:
Dante reservou os lugares mais quentes do Inferno para aqueles que em tempo de crise moral se mantivessem neutros. Suponho que há neste momento muitos lugares reservados. Para os neutros e para os cúmplices. E sobretudo para os que andaram a apregoar as delícias da mão invisível e da auto-regulação do mercado e agora recorrem à intervenção do Estado para socializar as perdas e preservar os seus bancos, as suas fortunas e os seus privilégios.
Este é de facto um tempo de crise, um tempo em que não se pode ser neutro. Tempo de decisão e coragem.
A coragem de Roosevelt quando, após a Grande Depressão, enfrentou os muito ricos com um política de fiscalidade redistributiva, com o reforço do papel dos sindicatos, com a elevação do nível geral dos salários, com a intervenção do Estado em sectores-chave da economia e com o estabelecimento de direitos sociais, como o serviço público de saúde. Que nomes não nos chamariam em Portugal se hoje disséssemos o mesmo.
A coragem do Governo da Frente Popular presidida por Léon Blum, quando, em 1936, tomou um conjunto de medidas fundadoras dos modernos direitos sociais. Entre eles as férias pagas e as imagens para sempre inapagáveis dos operários que partiam a cantar, de bicicleta ou de comboio, para pela primeira vez verem o mar e gozarem as praias que até então eram só de alguns.
Coragem para mudar a sociedade e a vida. Coragem para estar ao lado dos desempregados e desfavorecidos e não para, à custa dos dinheiros públicos, salvar um banco privado que administra grandes fortunas. Coragem para mudar. A começar por nós mesmos. Coragem para se saber de que lado se está do ponto de vista das lutas sociais. Coragem para dialogar onde até agora se monologava. Coragem para convergir onde até agora se divergia.
Esta não é uma iniciativa inter-partidária. E por isso não está nenhum partido a menos nem nenhum partido a mais. Estão aqui cidadãs e cidadãos que não querem ser neutros e pretendem, em conjunto, procurar novas respostas, convencidos de que é possível construir soluções alternativas e de que é esse o papel da esquerda: não se conformar, não se resignar, não desistir.
Muitos de nós combatemos, por caminhos diferentes, o pensamento único que nos últimos vinte e tal anos desregulou o mundo aplicando em toda a parte as mesmas receitas: diminuição do papel do Estado, redução dos serviços públicos ou a sua gestão em concorrência com os privados, esvaziamento dos direitos sociais, deslocalização, desemprego, exclusão, precariedade, corrupção, destruição do ambiente, agravamento das desigualdades, empobrecimento progressivo da qualidade da democracia.
Começou com Reagan e Thatcher, culminou com Bush e da pior maneira: com a guerra do Iraque, os voos da CIA e Guantánamo, símbolo tenebroso do desrespeito pelos Direitos do Homem de cuja proclamação se celebram agora 60 anos. E por isso é que a eleição de Barack Obama, que é, em si mesma, um factor de mudança cultural e cívica, constitui uma tão grande e porventura desmedida esperança.
Ao longo de todo este tempo, desde a queda do muro de Berlim, o capitalismo ficou sem concorrência, mesmo que para muitos de nós ela não fosse a mais desejável. E ficou também sem a resistência da social-democracia. Agiu como se tudo lhe fosse permitido. Algumas das conquistas sociais que vinham de 1936 e do pós-guerra foram sistematicamente desmanteladas ou reduzidas ao mínimo. Por outro lado, a globalização também globalizou as desigualdades. O resultado está à vista: colapso do sistema financeiro, recessão económica, uma democracia mais pobre, consequências sociais imprevisíveis. Está a acontecer na Grécia, amanhã pode ser em Espanha, pode ser na França, pode ser aqui. Em toda a parte.
Não é possível resignarmo-nos ao nível de desigualdades existente no nosso país. Segundo os índices da OCDE, somos um dos três países daquela organização onde há maiores desigualdades. E somos o país da União Europeia onde há mais desigualdade na distribuição da riqueza. Há qualquer coisa de errado no nosso modelo de desenvolvimento.
Há qualquer coisa que não bate certo num país em que cerca de 18% de portugueses vivem no limiar da pobreza e uma minoria de gestores se auto-atribui milhões e milhões em prémios, indemnizações e salários.
Há qualquer coisa de indecoroso na promiscuidade entre o exercício de cargos políticos e os negócios privados.
Há qualquer coisa do avesso quando o novo Código do Trabalho é elogiado pelo Presidente da CIP.
Há algo de obstinado e cego e surdo quando se insiste numa avaliação por quotas, administrativa e economicista, que está a paralisar a escola pública e a desqualificar a Administração Pública em geral.
Os debates que hoje se realizaram sobre “Democracia e Serviços Públicos” permitiram por certo estabelecer pontes e convergências para a construção de políticas alternativas. Não são um ponto de chegada, mas um ponto de partida. E seria interessante que cada um desses painéis pudesse continuar autonomamente a aprofundar o debate e encontrar novas soluções. Em torno destes temas é com certeza possível encontrar convergências.
Permitam-me agora algumas reflexões e propostas sobre a Democracia e os Serviços Públicos.
O conceito de serviços públicos como actividades de interesse geral que o Estado se obriga a prestar a todos os cidadãos surgiu no século passado. Foi então assumido que se tratava de necessidades colectivas que não podiam ser resolvidas pelo mercado.
A obsessão desreguladora dos anos oitenta pôs em causa este conceito e forçou a abertura ao mercado e à concorrência de sectores até então considerados “Serviços públicos”, como as grandes indústrias de redes (energia, telecomunicações, transportes ou serviços postais). Esses serviços passaram a designar-se como serviços de interesse económico geral.
O processo continuou em áreas essenciais ao cumprimento dos direitos sociais (educação, saúde, segurança social), com a entrada em força do mercado nessas áreas e a criação da figura das parcerias publico-privadas para substituir o que até então fora considerado serviço público.
Assistiu-se ao endeusamento do mercado e à diabolização do Estado, mesmo quando os níveis de satisfação desceram, o desemprego aumentou e os custos dispararam. E à sombra das parcerias publico-privadas floresceram grandes negócios privados e desvirtuaram-se regras de transparência obrigatórias no serviço público.
No direito comunitário, o coração do debate sobre os serviços públicos está no artigo 86 do Tratado Europeu, segundo o qual as empresas que prestam serviços de interesse económico geral estão sujeitas às regras da concorrência.
É preciso questionar e eliminar esta situação. A submissão dos serviços públicos às regras da concorrência priva o Estado de intervir em áreas essenciais para a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos e distorce a avaliação dos serviços prestados.
É inaceitável que os serviços públicos sejam tratados como se fossem uma qualquer mercadoria.
É inaceitável que se defenda a perda de milhares de empregos no sector público como condição de progresso.
É inaceitável que se instituam regras de avaliação na educação cujo objectivo é “emagrecer” o número de professores na escola pública.
É inaceitável o encerramento de serviços públicos no interior do país, que contribui, às vezes por forma dramática, para a desertificação do território.
É inaceitável a entrega sistemática ao privado de sectores económicos rentáveis, nomeadamente na área da energia.
A saída da actual crise financeira, económica e social exige que a esquerda apresente políticas alternativas ao modelo neo-liberal e especulativo ainda dominante. Políticas que se baseiem na solidariedade, na sustentabilidade e na cooperação.
Defendo por isso como prioridades:
• o abandono da agenda da “flexisegurança” por uma agenda do “bom emprego”. Isto implica que não se pode abdicar de promover o pleno emprego, com reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, incluindo a protecção na saúde e a conciliação do tempo de trabalho com a vida privada e familiar
• o combate à especulação financeira e o reforço dos poderes reguladores e intreventores do Estado
• o investimento público em sectores produtivos e geradores de bem estar social, desenvolvimento e emprego sustentável
• uma distribuição mais equitativa do rendimento e da riqueza como condição do desenvolvimento, através da garantia de salários e pensões mínimas mais elevados e da taxação fiscal de salários e pensões milionárias
• a promoção de políticas contra a pobreza, nas áreas da formação, emprego, habitação, acção social e direitos dos imigrantes
• o reconhecimento do direito à água como um direito humano
• a defesa e reforço da escola pública, do serviço nacional de saúde e da segurança social pública, como garantia de direitos fundamentais dos cidadãos
• a definição de políticas públicas para as cidades, que incluam o transporte, a habitação, o património, a cultura, o ambiente, o espaço público e a participação cívica
• a defesa da qualidade de vida e o combate à especulação imobiliária
• o incentivo a práticas de protecção do ambiente e de eficiência energética
Por todas estas razões, a esquerda tem de promover e aprofundar o debate sobre os serviços públicos e o seu papel numa democracia moderna e de qualidade.
Amigos, companheiros e camaradas
Uma crise como a que o mundo está a viver é também uma oportunidade de mudança. Uma oportunidade que a esquerda não deveria desperdiçar. Ninguém nos perdoaria. Uma oportunidade para propormos soluções de mudança e uma oportunidade para nós próprios também mudarmos. E neste sentido talvez o caminho seja mais árduo e mais complexo.
Não se trata de fazer revoluções já feitas e passadas.
Não se trata de reescrever a história que já está escrita.
Não se trata de inventar novos dogmas, novos sectarismos e novas excomunhões.
Ninguém é proprietário da esquerda, ninguém tem o monopólio da verdade, ninguém é dono do futuro.
A nossa força está na nossa pluralidade, nas nossas diferenças e, no respeito por elas, na nossa capacidade de construir convergências.
É esse o novo e grande desafio moral e político.
É essa a coragem de que precisamos. A coragem de não nos repetirmos. A coragem de abrir novos caminhos.
Não estamos aqui para tentar impedir que outros cresçam, mas para que toda a esquerda possa crescer em todos os sentidos. Não apenas eleitoralmente. Mas cívica e politicamente.
Porque esse é que é o problema. Crescer para quê? Para que políticas? Com que rumo? E para onde?
É preciso que parte da força eleitoral da esquerda não se vire contra si mesma. E muito menos contra as outras esquerdas. Porque essa tem sido a fragilidade das esquerdas europeias e da esquerda portuguesa. Há, por um lado, a esquerda do governo, que quando o é deixa de ser praticante. E a outra, que frequentemente se acantona no contra-poder.
Talvez aqui as convergências sejam mais difíceis de construir. Mas eu estou aqui para falar com clareza, com verdade e com fraternidade. Em meu entender, esse é o novo tabu que é preciso quebrar. A reconfiguração da esquerda implica a capacidade e a vontade de construir uma perspectiva alternativa de poder. Esta é a nova coragem que é preciso ter. Não só a coragem de resistir e persistir, de que muitos de nós temos experiência, mas a coragem de virar a página e construir uma nova esperança e uma nova alternativa.
Sei que não é fácil e não há agendas escondidas. Sei que é algo que não se decreta. Sei que é um processo que, para ser viável, exige consistência e passa pela difícil construção de uma via nova e de uma base programática sólida.
Mas estou de acordo com o que recentemente escreveu Rui Tavares: “Essa é a responsabilidade histórica da esquerda portuguesa. Mas não sabemos se ela vai estar à altura dessa responsabilidade.” Eu acho que precisamos de ter a coragem de estar à altura. Até porque, como diz o mesmo autor, “se o desejo da esquerda é transformar a sociedade portuguesa, o momento aí está.”
Permitam-me também que vos diga, com toda a franqueza e fraternidade, que a reconfiguração da esquerda portuguesa não se fará sem o concurso de eleitores, simpatizantes e militantes do Partido Socialista.
Permitam-me que daqui saúde os meus camaradas socialistas desempregados ou em trabalho precário. Os meus camaradas socialistas que se sentem inseguros com a crise e ameaçados por novas falências. Os meus camaradas socialistas professores que com muitos outros lutam pela suspensão de uma avaliação absurda. Os meus camaradas socialistas funcionários públicos que, apesar de todos os bloqueios, continuam honradamente a servir o Estado. Os meus camaradas que em condições difíceis, nos hospitais civis, trabalham para defender e dignificar o serviço nacional de saúde, grande bandeira e grande conquista da democracia portuguesa. Permitam-me, enfim, que saúde os meus camaradas socialistas que com outros milhares de trabalhadores se manifestam, resistem e protestam contra o novo Código do Trabalho, que representa, como disse Jorge Leita, um retrocesso civlizacional.
É para eles que vai neste momento o meu pensamento e a minha fidelidade de militante socialista.
Um grande português chamado Antero de Quental falou do socialismo como protesto moral contra a injustiça e a exploração. Foi há muito. Mas continua a ser uma boa inspiração para todos nós. Os explorados, os oprimidos, os deserdados da vida foram e são a razão de ser da esquerda. É por eles que estamos aqui, não pelas grandes fortunas, desculpem-me a insistência, do Banco Privado Português.
Amigos, Companheiros e Camaradas:
Eu acho que foi muito bom estarmos aqui a debater. Este debate constitui uma mudança de significado político e cultural.
Há muita gente insatisfeita. Eu também quero mais.
E agora, perguntarão?
Agora há que encontrar o caminho.
E esse caminho somos todos nós. São todas as cidadãs e cidadãos que querem outra política e outra alternativa. Por uma democracia, mais limpa, mais justa e mais solidária.
Saúdo os oradores e moderadores dos debates que hoje se realizaram.
É possível debater ideias sem dogmas, sem sectarismos e sem demagogia. Isso só não é possível para quem não pratica a democracia.
Amigos, companheiros e camaradas:
Dante reservou os lugares mais quentes do Inferno para aqueles que em tempo de crise moral se mantivessem neutros. Suponho que há neste momento muitos lugares reservados. Para os neutros e para os cúmplices. E sobretudo para os que andaram a apregoar as delícias da mão invisível e da auto-regulação do mercado e agora recorrem à intervenção do Estado para socializar as perdas e preservar os seus bancos, as suas fortunas e os seus privilégios.
Este é de facto um tempo de crise, um tempo em que não se pode ser neutro. Tempo de decisão e coragem.
A coragem de Roosevelt quando, após a Grande Depressão, enfrentou os muito ricos com um política de fiscalidade redistributiva, com o reforço do papel dos sindicatos, com a elevação do nível geral dos salários, com a intervenção do Estado em sectores-chave da economia e com o estabelecimento de direitos sociais, como o serviço público de saúde. Que nomes não nos chamariam em Portugal se hoje disséssemos o mesmo.
A coragem do Governo da Frente Popular presidida por Léon Blum, quando, em 1936, tomou um conjunto de medidas fundadoras dos modernos direitos sociais. Entre eles as férias pagas e as imagens para sempre inapagáveis dos operários que partiam a cantar, de bicicleta ou de comboio, para pela primeira vez verem o mar e gozarem as praias que até então eram só de alguns.
Coragem para mudar a sociedade e a vida. Coragem para estar ao lado dos desempregados e desfavorecidos e não para, à custa dos dinheiros públicos, salvar um banco privado que administra grandes fortunas. Coragem para mudar. A começar por nós mesmos. Coragem para se saber de que lado se está do ponto de vista das lutas sociais. Coragem para dialogar onde até agora se monologava. Coragem para convergir onde até agora se divergia.
Esta não é uma iniciativa inter-partidária. E por isso não está nenhum partido a menos nem nenhum partido a mais. Estão aqui cidadãs e cidadãos que não querem ser neutros e pretendem, em conjunto, procurar novas respostas, convencidos de que é possível construir soluções alternativas e de que é esse o papel da esquerda: não se conformar, não se resignar, não desistir.
Muitos de nós combatemos, por caminhos diferentes, o pensamento único que nos últimos vinte e tal anos desregulou o mundo aplicando em toda a parte as mesmas receitas: diminuição do papel do Estado, redução dos serviços públicos ou a sua gestão em concorrência com os privados, esvaziamento dos direitos sociais, deslocalização, desemprego, exclusão, precariedade, corrupção, destruição do ambiente, agravamento das desigualdades, empobrecimento progressivo da qualidade da democracia.
Começou com Reagan e Thatcher, culminou com Bush e da pior maneira: com a guerra do Iraque, os voos da CIA e Guantánamo, símbolo tenebroso do desrespeito pelos Direitos do Homem de cuja proclamação se celebram agora 60 anos. E por isso é que a eleição de Barack Obama, que é, em si mesma, um factor de mudança cultural e cívica, constitui uma tão grande e porventura desmedida esperança.
Ao longo de todo este tempo, desde a queda do muro de Berlim, o capitalismo ficou sem concorrência, mesmo que para muitos de nós ela não fosse a mais desejável. E ficou também sem a resistência da social-democracia. Agiu como se tudo lhe fosse permitido. Algumas das conquistas sociais que vinham de 1936 e do pós-guerra foram sistematicamente desmanteladas ou reduzidas ao mínimo. Por outro lado, a globalização também globalizou as desigualdades. O resultado está à vista: colapso do sistema financeiro, recessão económica, uma democracia mais pobre, consequências sociais imprevisíveis. Está a acontecer na Grécia, amanhã pode ser em Espanha, pode ser na França, pode ser aqui. Em toda a parte.
Não é possível resignarmo-nos ao nível de desigualdades existente no nosso país. Segundo os índices da OCDE, somos um dos três países daquela organização onde há maiores desigualdades. E somos o país da União Europeia onde há mais desigualdade na distribuição da riqueza. Há qualquer coisa de errado no nosso modelo de desenvolvimento.
Há qualquer coisa que não bate certo num país em que cerca de 18% de portugueses vivem no limiar da pobreza e uma minoria de gestores se auto-atribui milhões e milhões em prémios, indemnizações e salários.
Há qualquer coisa de indecoroso na promiscuidade entre o exercício de cargos políticos e os negócios privados.
Há qualquer coisa do avesso quando o novo Código do Trabalho é elogiado pelo Presidente da CIP.
Há algo de obstinado e cego e surdo quando se insiste numa avaliação por quotas, administrativa e economicista, que está a paralisar a escola pública e a desqualificar a Administração Pública em geral.
Os debates que hoje se realizaram sobre “Democracia e Serviços Públicos” permitiram por certo estabelecer pontes e convergências para a construção de políticas alternativas. Não são um ponto de chegada, mas um ponto de partida. E seria interessante que cada um desses painéis pudesse continuar autonomamente a aprofundar o debate e encontrar novas soluções. Em torno destes temas é com certeza possível encontrar convergências.
Permitam-me agora algumas reflexões e propostas sobre a Democracia e os Serviços Públicos.
O conceito de serviços públicos como actividades de interesse geral que o Estado se obriga a prestar a todos os cidadãos surgiu no século passado. Foi então assumido que se tratava de necessidades colectivas que não podiam ser resolvidas pelo mercado.
A obsessão desreguladora dos anos oitenta pôs em causa este conceito e forçou a abertura ao mercado e à concorrência de sectores até então considerados “Serviços públicos”, como as grandes indústrias de redes (energia, telecomunicações, transportes ou serviços postais). Esses serviços passaram a designar-se como serviços de interesse económico geral.
O processo continuou em áreas essenciais ao cumprimento dos direitos sociais (educação, saúde, segurança social), com a entrada em força do mercado nessas áreas e a criação da figura das parcerias publico-privadas para substituir o que até então fora considerado serviço público.
Assistiu-se ao endeusamento do mercado e à diabolização do Estado, mesmo quando os níveis de satisfação desceram, o desemprego aumentou e os custos dispararam. E à sombra das parcerias publico-privadas floresceram grandes negócios privados e desvirtuaram-se regras de transparência obrigatórias no serviço público.
No direito comunitário, o coração do debate sobre os serviços públicos está no artigo 86 do Tratado Europeu, segundo o qual as empresas que prestam serviços de interesse económico geral estão sujeitas às regras da concorrência.
É preciso questionar e eliminar esta situação. A submissão dos serviços públicos às regras da concorrência priva o Estado de intervir em áreas essenciais para a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos e distorce a avaliação dos serviços prestados.
É inaceitável que os serviços públicos sejam tratados como se fossem uma qualquer mercadoria.
É inaceitável que se defenda a perda de milhares de empregos no sector público como condição de progresso.
É inaceitável que se instituam regras de avaliação na educação cujo objectivo é “emagrecer” o número de professores na escola pública.
É inaceitável o encerramento de serviços públicos no interior do país, que contribui, às vezes por forma dramática, para a desertificação do território.
É inaceitável a entrega sistemática ao privado de sectores económicos rentáveis, nomeadamente na área da energia.
A saída da actual crise financeira, económica e social exige que a esquerda apresente políticas alternativas ao modelo neo-liberal e especulativo ainda dominante. Políticas que se baseiem na solidariedade, na sustentabilidade e na cooperação.
Defendo por isso como prioridades:
• o abandono da agenda da “flexisegurança” por uma agenda do “bom emprego”. Isto implica que não se pode abdicar de promover o pleno emprego, com reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, incluindo a protecção na saúde e a conciliação do tempo de trabalho com a vida privada e familiar
• o combate à especulação financeira e o reforço dos poderes reguladores e intreventores do Estado
• o investimento público em sectores produtivos e geradores de bem estar social, desenvolvimento e emprego sustentável
• uma distribuição mais equitativa do rendimento e da riqueza como condição do desenvolvimento, através da garantia de salários e pensões mínimas mais elevados e da taxação fiscal de salários e pensões milionárias
• a promoção de políticas contra a pobreza, nas áreas da formação, emprego, habitação, acção social e direitos dos imigrantes
• o reconhecimento do direito à água como um direito humano
• a defesa e reforço da escola pública, do serviço nacional de saúde e da segurança social pública, como garantia de direitos fundamentais dos cidadãos
• a definição de políticas públicas para as cidades, que incluam o transporte, a habitação, o património, a cultura, o ambiente, o espaço público e a participação cívica
• a defesa da qualidade de vida e o combate à especulação imobiliária
• o incentivo a práticas de protecção do ambiente e de eficiência energética
Por todas estas razões, a esquerda tem de promover e aprofundar o debate sobre os serviços públicos e o seu papel numa democracia moderna e de qualidade.
Amigos, companheiros e camaradas
Uma crise como a que o mundo está a viver é também uma oportunidade de mudança. Uma oportunidade que a esquerda não deveria desperdiçar. Ninguém nos perdoaria. Uma oportunidade para propormos soluções de mudança e uma oportunidade para nós próprios também mudarmos. E neste sentido talvez o caminho seja mais árduo e mais complexo.
Não se trata de fazer revoluções já feitas e passadas.
Não se trata de reescrever a história que já está escrita.
Não se trata de inventar novos dogmas, novos sectarismos e novas excomunhões.
Ninguém é proprietário da esquerda, ninguém tem o monopólio da verdade, ninguém é dono do futuro.
A nossa força está na nossa pluralidade, nas nossas diferenças e, no respeito por elas, na nossa capacidade de construir convergências.
É esse o novo e grande desafio moral e político.
É essa a coragem de que precisamos. A coragem de não nos repetirmos. A coragem de abrir novos caminhos.
Não estamos aqui para tentar impedir que outros cresçam, mas para que toda a esquerda possa crescer em todos os sentidos. Não apenas eleitoralmente. Mas cívica e politicamente.
Porque esse é que é o problema. Crescer para quê? Para que políticas? Com que rumo? E para onde?
É preciso que parte da força eleitoral da esquerda não se vire contra si mesma. E muito menos contra as outras esquerdas. Porque essa tem sido a fragilidade das esquerdas europeias e da esquerda portuguesa. Há, por um lado, a esquerda do governo, que quando o é deixa de ser praticante. E a outra, que frequentemente se acantona no contra-poder.
Talvez aqui as convergências sejam mais difíceis de construir. Mas eu estou aqui para falar com clareza, com verdade e com fraternidade. Em meu entender, esse é o novo tabu que é preciso quebrar. A reconfiguração da esquerda implica a capacidade e a vontade de construir uma perspectiva alternativa de poder. Esta é a nova coragem que é preciso ter. Não só a coragem de resistir e persistir, de que muitos de nós temos experiência, mas a coragem de virar a página e construir uma nova esperança e uma nova alternativa.
Sei que não é fácil e não há agendas escondidas. Sei que é algo que não se decreta. Sei que é um processo que, para ser viável, exige consistência e passa pela difícil construção de uma via nova e de uma base programática sólida.
Mas estou de acordo com o que recentemente escreveu Rui Tavares: “Essa é a responsabilidade histórica da esquerda portuguesa. Mas não sabemos se ela vai estar à altura dessa responsabilidade.” Eu acho que precisamos de ter a coragem de estar à altura. Até porque, como diz o mesmo autor, “se o desejo da esquerda é transformar a sociedade portuguesa, o momento aí está.”
Permitam-me também que vos diga, com toda a franqueza e fraternidade, que a reconfiguração da esquerda portuguesa não se fará sem o concurso de eleitores, simpatizantes e militantes do Partido Socialista.
Permitam-me que daqui saúde os meus camaradas socialistas desempregados ou em trabalho precário. Os meus camaradas socialistas que se sentem inseguros com a crise e ameaçados por novas falências. Os meus camaradas socialistas professores que com muitos outros lutam pela suspensão de uma avaliação absurda. Os meus camaradas socialistas funcionários públicos que, apesar de todos os bloqueios, continuam honradamente a servir o Estado. Os meus camaradas que em condições difíceis, nos hospitais civis, trabalham para defender e dignificar o serviço nacional de saúde, grande bandeira e grande conquista da democracia portuguesa. Permitam-me, enfim, que saúde os meus camaradas socialistas que com outros milhares de trabalhadores se manifestam, resistem e protestam contra o novo Código do Trabalho, que representa, como disse Jorge Leita, um retrocesso civlizacional.
É para eles que vai neste momento o meu pensamento e a minha fidelidade de militante socialista.
Um grande português chamado Antero de Quental falou do socialismo como protesto moral contra a injustiça e a exploração. Foi há muito. Mas continua a ser uma boa inspiração para todos nós. Os explorados, os oprimidos, os deserdados da vida foram e são a razão de ser da esquerda. É por eles que estamos aqui, não pelas grandes fortunas, desculpem-me a insistência, do Banco Privado Português.
Amigos, Companheiros e Camaradas:
Eu acho que foi muito bom estarmos aqui a debater. Este debate constitui uma mudança de significado político e cultural.
Há muita gente insatisfeita. Eu também quero mais.
E agora, perguntarão?
Agora há que encontrar o caminho.
E esse caminho somos todos nós. São todas as cidadãs e cidadãos que querem outra política e outra alternativa. Por uma democracia, mais limpa, mais justa e mais solidária.
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