Manuel Alegre: Uma visão política do futebol, no Público de 9 de Junho
Selecção e liturgia
1. Fiquei surpreendido com a forma como 30.000 espectadores se despediram da selecção de sub-21 em Guimarães. Não somos ingleses e não é hábito nosso aplaudir quem é eliminado. Perguntei-me a quem se dirigiam quando gritavam: "Portugal, Portugal, Portugal." Seria àqueles jogadores que tanto os tinham desiludido ou à selecção principal, àquela que consubstancia agora uma esperança talvez desmedida? Pensei então que eles estavam, como Torga costumava dizer, a "entusiasmar-se com o seu próprio entusiasmo". É esse o milagre do Mundial: ele restitui aos povos, através das suas selecções, o perdido sentido da festa e da alegria. E também o sentimento de pertença a um país, uma comunidade, uma tribo. Porque não nos iludamos: é o antiquíssimo espírito da tribo que renasce dentro de nós a pretexto da selecção. O principal mérito de Scolari foi o de ter percebido isso. Ele criou uma nova liturgia: bandeiras, hino, cachecóis. Convenceu os portugueses de que cada um faz parte da selecção e que a vitória depende do que cada um e todos fizerem, pondo uma bandeira à janela, um cachecol ao pescoço, comprando um relógio da federação ou rezando uma oração, de preferência à Senhora do Bom Sucesso. O resto virá por acréscimo. Como se tão ou mais importante do que o jogo jogado no campo fosse o entusiasmo cá fora, a fé, a paixão, a entrega dos portugueses à sua selecção. Claro que isto não chega, como se viu na eliminação dos sub-21. Mas este estado de espírito, independentemente do resultado final, é já, em si mesmo, uma vitória. Uma vitória contra a rotina, contra o desalento, contra a crise, o desemprego e a insegurança, contra o vazio e a ausência de causas, de sonho e de projectos. E até mesmo contra o fatalismo e a descrença dos portugueses em si próprios. A selecção de futebol é hoje um factor de reidentificação, a causa que já não há, o sonho perdido. É mau? É bom? É assim. E é talvez melhor que nada.
Claro que bancos e grandes empresas também já perceberam e por isso uns e outros aparecem agora com as cores da selecção. E por isso a febre dos anúncios, todos eles de verde e vermelho e de quinas ao peito.
2. Os portugueses oscilam entre uma visão megalómana do seu país e o negro fado fatal. Num ápice passam da euforia à disforia. Mas é sintomático que, apesar de várias frustrações, a esperança na selecção tenha renascido daquilo a que Antero de Quental chamava "uma atonia nacional". Horror ao vazio. Mas não só. Não sei se Scolari é ou não um bom treinador. Sei que tem um talento raro para liderar um grupo e para as relações públicas, para o marketing, para a mobilização popular. Se se metesse na política, dificilmente perderia uma eleição. Sei também que ele fez da selecção um clube, o seu clube, o nosso clube, colocando-a acima de outros clubismos e dos nossos tradicionais e doentios sectarismos. E é por isso que os adeptos da selecção são diferentes dos que normalmente assistem aos jogos do campeonato nacional. Com a selecção estão famílias inteiras, velhos e novos, avós, pais e netos. E mulheres, muitas mulheres. Talvez nem todos gostem de futebol. Gostam da selecção. Ou do hino cantado em coro. Ou da bandeira. Ou simplesmente de estarem juntos e partilharem um mesmo sentido de festa e de emoção.
3. As escolhas de Scolari não me surpreenderam. Era óbvio que ele nunca convocaria jogadores que já não fizessem parte do grupo. Concorde-se ou não (e eu nunca concordei, por exemplo, com a exclusão de Baía), ele foi coerente com a sua filosofia e o seu método, escolheu os já escolhidos, aqueles que conhece bem, em quem confia e que nele confiam. Mesmo que não tenham jogado muito nos seus clubes ou que estejam um pouco tocados ou, como no caso de Costinha, sem ritmo competitivo. Não importa. Para ele, o que conta é o espírito da selecção. E escolheu aqueles que lhe dão essa garantia. Os que, de certo modo, já lá estavam. Nomeadamente Costinha, grande jogador, indispensável no balneário e, como se viu contra Cabo Verde, no meio-campo. Scolari acredita, e eu também, que a garra de Costinha vai conseguir o milagre de o pôr em plena forma.
4. Eu preferia que Portugal estivesse num grupo com adversários supostamente mais fortes: Inglaterra, Holanda, Espanha. Não duvido que, nesse caso, a selecção jogaria ao seu ritmo, com total concentração e aquele rasgo que, em outras circunstâncias, nos levou a dobrar vários cabos. Afligem-me os grupos ditos “fáceis”, Primeiro, porque já não os há. Depois porque, por muito alertados que estejam, os jogadores têm inconscientemente tendência para abrandar o ritmo e esperar que aconteça. Ora, como se diz numa velha canção brasileira, "esperar não é saber". Não sei se Scolari se lembra da letra e da música. Se sim, aconselho-o a mais esta pequena liturgia: pôr a selecção a cantar "quem sabe faz a hora / não espera acontecer". Eu não subestimaria Angola nem o Irão. Se conseguirmos vencer esses jogos, para mim os mais difíceis, tudo fica em aberto e pode ser, parafraseando Píndaro, que "o incrível se torne crível".
5. Cristiano Ronaldo é, sem dúvida, um jogador de excepção. Pode, num repente, desequilibrar uma partida. Num sentido positivo ou negativo. Com um golpe de génio e um golo impossível ou com uma atitude irreflectida susceptível de cartão vermelho. Esperemos que Ronaldo jogue como no Manchester, para a equipa. E não para ele nem para o aplauso fácil. Um Ronaldo em forma, maduro e inspirado, será o principal trunfo de Portugal, aquele que, em certos momentos, poderá fazer a diferença.
Penso, no entanto, que os jogadores nucleares da selecção continuam a ser Figo e Deco, os que pensam o jogo e organizam a equipa e, sem menosprezo pelos outros, lhe dão um inconfundível toque de talento e classe. Já sei que ninguém é insubstituível, mas o nosso problema é que Figo e Deco, por enquanto, são. O Brasil tem no banco outra equipa, Portugal tem suplentes de grande qualidade. Mas não tem outro Figo nem outro Deco. Talvez por isso seja tão importante o 12° jogador, nós todos. Porque não sei se, além do meu amigo Eduardo Prado Coelho, já se deram conta de que estamos todos equipados, temos todos nas costas o n° 12, vamos todos para o banco e, a qualquer momento, qualquer um de nós pode ser chamado a entrar em campo. ∎ POETA E DEPUTADO
1. Fiquei surpreendido com a forma como 30.000 espectadores se despediram da selecção de sub-21 em Guimarães. Não somos ingleses e não é hábito nosso aplaudir quem é eliminado. Perguntei-me a quem se dirigiam quando gritavam: "Portugal, Portugal, Portugal." Seria àqueles jogadores que tanto os tinham desiludido ou à selecção principal, àquela que consubstancia agora uma esperança talvez desmedida? Pensei então que eles estavam, como Torga costumava dizer, a "entusiasmar-se com o seu próprio entusiasmo". É esse o milagre do Mundial: ele restitui aos povos, através das suas selecções, o perdido sentido da festa e da alegria. E também o sentimento de pertença a um país, uma comunidade, uma tribo. Porque não nos iludamos: é o antiquíssimo espírito da tribo que renasce dentro de nós a pretexto da selecção. O principal mérito de Scolari foi o de ter percebido isso. Ele criou uma nova liturgia: bandeiras, hino, cachecóis. Convenceu os portugueses de que cada um faz parte da selecção e que a vitória depende do que cada um e todos fizerem, pondo uma bandeira à janela, um cachecol ao pescoço, comprando um relógio da federação ou rezando uma oração, de preferência à Senhora do Bom Sucesso. O resto virá por acréscimo. Como se tão ou mais importante do que o jogo jogado no campo fosse o entusiasmo cá fora, a fé, a paixão, a entrega dos portugueses à sua selecção. Claro que isto não chega, como se viu na eliminação dos sub-21. Mas este estado de espírito, independentemente do resultado final, é já, em si mesmo, uma vitória. Uma vitória contra a rotina, contra o desalento, contra a crise, o desemprego e a insegurança, contra o vazio e a ausência de causas, de sonho e de projectos. E até mesmo contra o fatalismo e a descrença dos portugueses em si próprios. A selecção de futebol é hoje um factor de reidentificação, a causa que já não há, o sonho perdido. É mau? É bom? É assim. E é talvez melhor que nada.
Claro que bancos e grandes empresas também já perceberam e por isso uns e outros aparecem agora com as cores da selecção. E por isso a febre dos anúncios, todos eles de verde e vermelho e de quinas ao peito.
2. Os portugueses oscilam entre uma visão megalómana do seu país e o negro fado fatal. Num ápice passam da euforia à disforia. Mas é sintomático que, apesar de várias frustrações, a esperança na selecção tenha renascido daquilo a que Antero de Quental chamava "uma atonia nacional". Horror ao vazio. Mas não só. Não sei se Scolari é ou não um bom treinador. Sei que tem um talento raro para liderar um grupo e para as relações públicas, para o marketing, para a mobilização popular. Se se metesse na política, dificilmente perderia uma eleição. Sei também que ele fez da selecção um clube, o seu clube, o nosso clube, colocando-a acima de outros clubismos e dos nossos tradicionais e doentios sectarismos. E é por isso que os adeptos da selecção são diferentes dos que normalmente assistem aos jogos do campeonato nacional. Com a selecção estão famílias inteiras, velhos e novos, avós, pais e netos. E mulheres, muitas mulheres. Talvez nem todos gostem de futebol. Gostam da selecção. Ou do hino cantado em coro. Ou da bandeira. Ou simplesmente de estarem juntos e partilharem um mesmo sentido de festa e de emoção.
3. As escolhas de Scolari não me surpreenderam. Era óbvio que ele nunca convocaria jogadores que já não fizessem parte do grupo. Concorde-se ou não (e eu nunca concordei, por exemplo, com a exclusão de Baía), ele foi coerente com a sua filosofia e o seu método, escolheu os já escolhidos, aqueles que conhece bem, em quem confia e que nele confiam. Mesmo que não tenham jogado muito nos seus clubes ou que estejam um pouco tocados ou, como no caso de Costinha, sem ritmo competitivo. Não importa. Para ele, o que conta é o espírito da selecção. E escolheu aqueles que lhe dão essa garantia. Os que, de certo modo, já lá estavam. Nomeadamente Costinha, grande jogador, indispensável no balneário e, como se viu contra Cabo Verde, no meio-campo. Scolari acredita, e eu também, que a garra de Costinha vai conseguir o milagre de o pôr em plena forma.
4. Eu preferia que Portugal estivesse num grupo com adversários supostamente mais fortes: Inglaterra, Holanda, Espanha. Não duvido que, nesse caso, a selecção jogaria ao seu ritmo, com total concentração e aquele rasgo que, em outras circunstâncias, nos levou a dobrar vários cabos. Afligem-me os grupos ditos “fáceis”, Primeiro, porque já não os há. Depois porque, por muito alertados que estejam, os jogadores têm inconscientemente tendência para abrandar o ritmo e esperar que aconteça. Ora, como se diz numa velha canção brasileira, "esperar não é saber". Não sei se Scolari se lembra da letra e da música. Se sim, aconselho-o a mais esta pequena liturgia: pôr a selecção a cantar "quem sabe faz a hora / não espera acontecer". Eu não subestimaria Angola nem o Irão. Se conseguirmos vencer esses jogos, para mim os mais difíceis, tudo fica em aberto e pode ser, parafraseando Píndaro, que "o incrível se torne crível".
5. Cristiano Ronaldo é, sem dúvida, um jogador de excepção. Pode, num repente, desequilibrar uma partida. Num sentido positivo ou negativo. Com um golpe de génio e um golo impossível ou com uma atitude irreflectida susceptível de cartão vermelho. Esperemos que Ronaldo jogue como no Manchester, para a equipa. E não para ele nem para o aplauso fácil. Um Ronaldo em forma, maduro e inspirado, será o principal trunfo de Portugal, aquele que, em certos momentos, poderá fazer a diferença.
Penso, no entanto, que os jogadores nucleares da selecção continuam a ser Figo e Deco, os que pensam o jogo e organizam a equipa e, sem menosprezo pelos outros, lhe dão um inconfundível toque de talento e classe. Já sei que ninguém é insubstituível, mas o nosso problema é que Figo e Deco, por enquanto, são. O Brasil tem no banco outra equipa, Portugal tem suplentes de grande qualidade. Mas não tem outro Figo nem outro Deco. Talvez por isso seja tão importante o 12° jogador, nós todos. Porque não sei se, além do meu amigo Eduardo Prado Coelho, já se deram conta de que estamos todos equipados, temos todos nas costas o n° 12, vamos todos para o banco e, a qualquer momento, qualquer um de nós pode ser chamado a entrar em campo. ∎ POETA E DEPUTADO
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