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2006/06/25

O Vendaval - publicado no Diário de Coimbra de 22 de Junho

Enviado hoje por Adelaide Chichorro para publicação no blogue

O Vendaval

O vendaval que afecta quem trabalha para o Estado levou-me no feriado a procurar descontracção num centro comercial. Optei por comida brasileira. Não para evitar a portuguesa, mas porque aquele era dos poucos locais onde os clientes não são obrigados a usar loiça descartável (resta-me um vislumbre de rebeldia, sem a qual não seria capaz de saborear o almoço ou sequer a vida). Ali havia a possibilidade, por um preço razoável, de somente escolher frutas e legumes, independentemente do peso. Porém, se o cliente preferir carne, o preço aumenta sensivelmente para o dobro. Uma medida só em parte correcta: é preciso que nos habituemos a comer menos carne, até por razões de saúde, prevenindo a bioacumulação de tóxicos. O feijão substitui-a, sem causar o mesmo impacto ambiental ao nível da produção. Mas como ali o preço depende do peso, comer apenas feijão preto com saladas e frutas faz com que o custo da refeição não difira muito do de um prato de carne. A carne possui, na cultura luso-brasileira, um valor muito elevado (bem como a comida cozinhada em geral, obrigando à existência de um fogão, que até dá o nome às casas – denominamo-las por «fogos»). Ora, também na nossa assimétrica e concentracionista economia, «a carne é Lisboa, e o resto é paisagem».

Tudo isto vem a propósito do vendaval que assola institutos públicos, universidades, politécnicos, escolas secundárias, primárias, maternidades, fazendo-nos cerrar os olhos para nada mais vermos a não ser futebol, amodorrados na toca, comfortably numb (Pink Floyd). Por via das restrições orçamentais que, em nome não sei de que desígnios, vêm deixando muitas instituições públicas a pele e osso, qualquer um dos que aí trabalham – se é que não pifou de vez – ocupa-se a não dar nas vistas, uma vez que pode ver-se na necessidade de arremessar para fora do barco o colega do lado, se confrontado com decisões do género «é ele ou eu». Em tais condições de concorrência (globalmente nada competitivas), típicas da sociedade da cotovelada para que nos andam a empurrar, quem cuida da capacidade de se associar? Quem se organiza para manter em bom estado o regime democrático? Quem fala ou critica? Quem estuda verdadeiramente certos assuntos? Quem se atreve a ser solidário?

Proliferam nas televisões e nos jornais nacionais os criticadores de serviço, pagos pelos sempre difusos patrões dos media, sem estarem sujeitos a concurso ou provas públicas. Postam-se (o termo poderia relacionar-se com «postura», mas também com as «postas de pescada» que expelem em abundantes ventuosidades articulatórias) à janela do Windows e analisam com minúcia enfadadamente negligé o povinho cá em baixo, minusculinho e muito aflito. São eles (os boys, os analistas e os «pareceiros») os que, ao mínimo sinal, imediatamente se arregimentam para, em catadupas de caracteres, nada de relevante dizerem e, à míngua de argumentos, lutarem contra um português menos formal, por norma equiparado a populismos ditos fáceis ou até a alguma agressividade. Num país onde todos julgam pertencer às elites, não é o povo quem mais ordena. Este apenas se vai governando como pode, de preferência de bico calado, porque o que dita as regras não é a «governança», mas antes o desenrascanço individualista e soez, ultrapassando em refinamento tudo o que, noutros tempos, tomaríamos à primeira vista por ficção.

Uma tal retórica é, por vezes, testada por uns franganitos penteados, tresandando a autoridade alheia, no sentido de trucidar quem se atreva a contestar certos dogmas da ciência, mesmo quando ela é retrógrada e inútil, para não dizer pusilânime – que sempre é um termo menos troglodita e que pode ser que passe (numa mulher, ser-se acusada de agressividade é o mesmo que ser atirada para as catacumbas da exclusão). Certas decisões, em regra tomadas por homens, são sobretudo de natureza política ou económica, e portanto não tão científicas, urgentes ou democráticas assim. Devemos pois questionar-nos sobre de que ciência se está a falar, e em que condições ela está a ser (des)feita, pondo o Estado contra si mesmo, cidadãos contra cidadãos, uns temas e problemas contra outros temas e problemas.

Com este vendaval de determinação irracional, como é possível lutar em Coimbra contra a co-incineração, ou seja, contra o piorzinho que nos lega a actividade profissional mal conduzida (e avaliada por quem?) de muitos desses tais que tanto bradam, por interposto articulista, contra as profissões ligadas ao Estado? Como é possível estar vigilante, caso essa Europa – a mesma cujo ténue vislumbre nos querem tapar – ponha de lado o respeito para connosco e nos envie vendavais de luxos inúteis e devoradores de energia, logo seguidos de vendavais de lixos, vendavais de ciclones verdadeiros, mailos respectivos tsunamis e coriscos, vendavais de tudo o que não tem préstimo? Como o lixo tóxico de todo o país e – já agora venha ele também – de boa parte dessa vasta Europa?

Já que não podemos fugir de Portugal (ou desta Coimbrinha ocupada com a vidinha), fiquemo-nos nos feriados (pena não termos o de Pentecostes) por uma «picanha» vegetariana, exclusivamente à base de legumes e frutas, porque mais cedo do que tarde vamos ter de aprender a governar-nos com essa nuvem de poeira que está para chegar, vinda desse enorme deserto de ideias que nos tapa os olhos. Havemos de a sentir na nossa «carne para canhão», cada vez mais sujeita a bombardeamentos, cirúrgicos claro, por esses hospitais.

Adelaide Chichorro Ferreira

Professora na Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra