M!CporCoimbra

2006/07/15

Diálogos_1 do MIC/Coimbra: Intervenção de Elísio Estanque

Elísio Estanque, Professor de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Investigador do Centro de Estudos Sociais, é membro da Comissão Coordenadora do MIC/Coimbra. Transcreve-se o texto que preparou sobre a sua intervenção no Debate.

Para Reinventar a Democracia e a Cidadania

Perante questões tão comuns e tão abrangentes como as que titulam este texto, não é fácil acrescentar algo de radicalmente novo. São temas que já suscitaram tanta controvérsia ao longo da história que se torna difícil ser inovador.

A democracia grega, embora apoiada numa concepção restrita e elitista de cidadania, continha, apesar disso, elementos comunitaristas e participativos em que, no espaço da polis, o autogoverno e o princípio da rotatividade eram estimulados. Formas de democracia representativa e também de democracia participativa tiveram aí a sua génese. Mas também foi aí que os demagogos (como Cléon) mostraram pela primeira vez o perigo do populismo e os efeitos nefastos da retórica, na sua capacidade de perverter a democracia e de manipulação da vontade popular.

Com o advento da modernidade, porém, a democracia liberal (e o correlativo conceito de cidadania restrita e individual, limitada, na prática, ao direito de voto) que se impôs no mundo ocidental apoiou-se na racionalidade individualista, em ruptura com as formas clássicas de participação. A busca de consenso, ao longo dos séculos XIX e XX, assentou numa tirania da razão economicista. O consenso burguês estruturou-se largamente em torno da recusa da ideia marxista de revolução e da utopia socialista. Primeiro, com base no puro princípio mercantilista, e mais tarde (no período do pós-guerra) apoiado na acção estatal, promoveu um contrato social que resultou no apaziguamento das lutas operárias e na institucionalização da democracia representativa, tornado o modelo universal, sobretudo com o triunfo do Estado-providência europeu.

Este modelo hegemónico assentou em 2 pressupostos: por um lado, a necessidade de retirar qualquer papel à mobilização de massas e à acção colectiva na construção democrática; e por outro, a sobrevalorização dos mecanismos de representação numa espécie de solução elitista para a democracia moderna.

Na perspectiva liberal (Hans Kelsen, Schumpeter, N. Bobbio e outros), a tomada de decisões não pode contemplar a soberania popular na medida em que, segundo tal ponto de vista, as camadas populares cedem a impulsos irracionais e, em política, comportam-se de maneira quase infantil. A ideia de incapacidade do povo e de inoperância de formas de cidadania activa baseou-se ainda no poder atribuído à burocracia (M. Weber, R. Michels, etc). Quer porque a complexidade social era cada vez maior e exigia, por isso, que os procedimentos decisórios fossem assegurados pelos eleitos, quer porque seria inevitável uma crescente perda de controlo das instituições democráticas, entregues a regulamentos impessoais e aos burocratas especialistas no seu manuseamento. Assim, uma concepção de soberania ascendente, ou seja, o controlo dos governos pelos governados, cedeu o passo à ideia de uma soberania descendente, isto é, o controlo dos governados pela burocracia. Trata-se, portanto, de uma lei de bronze que remete o povo, e mesmo as bases dos partidos políticos, para a sua inelutável condição submissa e conformista.

Seja como for, mesmo as visões mais optimistas acerca da gestão burocrática das instituições, perceberam a dificuldade destas em lidar com a criatividade. De facto, o sistema burocrático tende a responder uniformemente a problemas diferenciados e, dessa forma, vê-se impedido de encontrar soluções plurais para sistemas que contém no seu seio uma vasta diversidade de saberes e conhecimentos. E é aí que reside a necessidade de proceder a arranjos participativos, ainda que num quadro institucional fundado na legitimidade da representação.

As condições de exercício da democracia participativa podem, assim, assumir-se como o tónico necessário capaz de evitar a esclerose vertiginosa em que repetidamente se deixam enredar os consensos da democracia representativa, em especial na sua versão mais liberal e elitista. Dito de outro modo, as oligarquias instaladas nos sistemas democráticos representativos – e nas burocracias que lhes dão suporte – só podem ser combatidas com base em formas de participação democrática que recuperem o princípio da «autorização» através da rotatividade. A renovação das estruturas dirigentes deverá ser um primeiro requisito para a revitalização da democracia e para a credibilidade da política.

A democracia pressupõe indeterminação, pelo que há necessidade de uma permanente reinvenção, quer das formas quer dos conteúdos do discurso público. Mesmo a versão mais liberal de democracia assenta na visão ontológica de que a opinião própria vale tanto como a alheia, e de que a verdade absoluta não existe. É nesse sentido que a democracia implica procedimentos em que a criação da norma resulte sempre de uma sequência de discursos e réplicas. Porém, tais procedimentos só podem ter eficácia se – como diz J. Habermas – pudermos desenvolver espaços e condições que permitam a possibilidade do «agir justo», isto é, condições em que o discurso crítico e a luta argumentativa estejam resguardados dos constrangimentos e relações de poder habituais, e em que os sujeitos individuais suspendam momentaneamente os seus interesses.

Difíceis condições, mas pelas quais valerá a pena lutar.
Perante o evidente desgaste, senão mesmo a crescente exaustão dos regimes democráticos, é cada vez mais urgente que a cidadania cívica e política se projectem numa nova dimensão. Isso exige a reinvenção de novas formas e mecanismos de exercício dos direitos cívicos e políticos. Requer novas concepções de construção da cidadania e da esfera pública democrática. Para tanto, importa promover a recuperação do sujeito social activo, ou seja, promover uma ruptura com o individualismo conformista e consumista que a racionalidade moderna produziu (com o triunfo do capitalismo), e que o neo-liberalismo vigente tem vindo a expandir à volta do globo nas últimas décadas.

Como sabemos, o indivíduo enquanto unidade desligada do colectivo, ou como essência independente e auto-determinada, não passa de uma mistificação. O sujeito social, a pessoa, constrói-se na relação com os outros e é moldado pela experiência auto-reflexiva através de uma pluralidade de «superfícies discursivas» que emanam dos contextos sociais e das experiências partilhadas em colectividade. Nessa medida, o sujeito social activo só pode sê-lo se for simultaneamente um sujeito político, que questione e interpele os poderes instalados. Por isso, à velha tensão entre público/ privado deve contrapor-se que as escolhas e opções privadas contaminam e modelam os desempenhos públicos. E à dicotomia liberdade/ igualdade deve contrapor-se uma exigência de liberdade sempre que a igualdade se torne opressora, e uma exigência de igualdade sempre que a desigualdade seja exploradora ou excludente.

Deste modo, a cidadania social que hoje precisamos de construir terá de ser mais que uma síntese entre a cidadania cívica do século XIX e a cidadania política do século XX. Importa, pois, ultrapassar essa divisão artificial e passar a exigir uma nova politização da sociedade civil. Impõe-se, pois, uma cidadania que seja simultaneamente social e política. E esta só se consegue com novos agentes, novos discursos e novas acções, que apostem num radicalismo reformista e transformador das instituições e da sociedade, mas que contem com a intervenção dos cidadãos e com a mobilização dos grupos organizados na construção do destino colectivo da comunidade.

Não se reinventam a democracia e a cidadania no abstracto. Nem isso valeria de muito. Mas é possível recriar novos processos de exercício da cidadania que conjuguem democracia representativa e democracia participativa. As duas lógicas coabitam em diferentes contextos sociais e regiões do mundo, embora a forma de articulação entre ambas possa variar no tempo e no espaço. Desde a mera coexistência à relação de complementaridade ou interdependência, há quem defenda que tal articulação varia consoante a escala territorial.

Em Portugal, os défices democráticos são conhecidos a muitos níveis. A cultura democrática é ainda demasiado incipiente. No mundo laboral, por exemplo, abundam as denúncias de práticas prepotentes e até de cariz fascista. As violações, os abusos, o desrespeito pelos direitos, a insensibilidade perante a justiça social e humana, a existência de medos no quotidiano de trabalho, nas instituições e organizações (públicas ou privadas) ilustram suficientemente a fragilidade da nossa democracia.

Segundo o cientista político R. Dahl, quanto menor a unidade democrática maior o potencial para a participação; e quanto maior a unidade democrática maior será a necessidade de delegar as decisões em representantes. Daí que o poder local mereça particular atenção. É possível implementar – em articulação com os municípios – todo um conjunto de mecanismos de gestão participativa capazes de se assumirem não só como processos democráticos de deliberação, mas também como formas eficazes de estímulo ao desenvolvimento social em defesa da qualidade de vida das cidades e do bem-estar das colectividades.

Se o governo central e os autarcas tiverem vontade política e capacidade de liderança, se os tráficos de interesses puderem dar lugar, definitivamente, à defesa do interesse público, será possível construir uma democracia mais viva, mais participativa e mais adequada a promover a justiça social e o progresso do país. Assembleias de bairro, associações cívicas, referendos, orçamentos participativos, projectos e parcerias em rede, democracia electrónica e diálogo directo com os cidadãos através dos novos meios informáticos, planos estratégicos comunitários, conselhos de jurados de cidadãos, etc, são apenas algumas formas já implementadas em muitos lugares do planeta. Conceitos assinalados recentemente pelas ciências sociais, como os de «governância» e «empowerment» traduzem a crescente importância de tais experiências, tanto pelos resultados concretos para as populações envolvidas, como pelo seu contributo inovador para a democracia participativa.

Apesar de há muito caídas no esquecimento, as inúmeras experiências de base popular (inclusive em articulação com as instituições da época), que emergiram no nosso país no pós-25 de Abril de 1974, mostram o imenso potencial de cidadania activa que existe no país (de resto, bem visível na última campanha presidencial, com a candidatura de Manuel Alegre). Um potencial hoje muito inibido, como sabemos, e que se esconde sob o manto de pessimismo e desencanto que recobre a sociedade portuguesa, recentemente definida (por José Gil) pelo «medo de existir», mas que se tem revelado também em bons exemplos, embora esporádicos, de iniciativas locais de democracia participativa.

Gostaria de apontar o debate público recentemente promovido pela autarquia de Coimbra para discutir uma questão central para a qualidade de vida da cidade (os projectos para os terrenos e edifícios da actual Prisão Penitenciária de Coimbra), como um primeiro sinal da vontade de ouvir e dialogar com os cidadãos. Mas não é possível ainda medir o alcance desse gesto. A cidadania activa exige mais, muito mais do que isso. Exige que o cidadão e as suas estruturas organizativas tomem parte activa das decisões estruturantes e não apenas ocupem um lugar decorativo para legitimar decisões centralistas, tantas vezes fundadas em negociatas e nos interesses escondidos do costume.