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2006/10/30

Elísio Estanque hoje no Diário de Coimbra: A praxe, a latada e o machismo anacrónico

Publicado hoje no Diário de Coimbra

A praxe, a latada e o machismo anacrónico

Elísio Estanque
Sociólogo – Centro de Estudos Sociais da FEUC

Olhando para o cartaz da Latada de 2006 da Universidade de Coimbra podemos facilmente identificar três dos principais traços que definem hoje o ambiente académico: a irreverência boémia, a violência simbólica e o machismo.

Quanto ao primeiro, a cultura estudantil, o divertimento e o ritualismo festivo constituem um campo de práticas socioculturais constituintes da própria identidade académica e da imagem pública da Lusa Atenas. Nada contra isso. Afinal, a irreverência, a subversão, a boémia e os comportamentos extremos são desde sempre associados à rebeldia da juventude estudantil. Além disso, como se sabe, o consumo de álcool, a praxe, os excessos e a violência contra os caloiros já são temas de polémica desde pelo menos o século XVIII. Nada disto é novo, portanto. Porém, enquanto até anos sessenta esta irreverência transportava em si uma cultura de dissensão, uma mistura de elementos de diversão e consumos culturais de vanguarda, onde a boémia se combinava com a consciência crítica e até com a acção política (como durante a crise de 1969), nos dias que correm as sociabilidades estudantis e os rituais académicos obedecem mais a uma lógica consumista e os excessos cometidos nas festividades académicas são, infelizmente, mais visíveis no abuso do álcool, nos comportamentos irracionais e na violência sobre os caloiros. O lado social e político da irreverência estudantil parecem irremediavelmente perdidos, pelo menos no contexto das festas académicas.

Em segundo lugar, as praxes estão hoje desadequadas, pelo menos na sua actual forma, perante a massificação da Universidade e contrariam muitas vezes o respeito pelas regras democráticas de civilidade e o direito à diferença. Há uma crescente consciência crítica que olha as brincadeiras praxistas com desconfiança e aumenta o sentimento de que elas devem adaptar-se à nova realidade académica. Num inquérito recente, aplicado em 2005 aos estudantes de Coimbra (no âmbito de um projecto em conclusão no Centro de Estudos Sociais), apenas cerca de 15% acham que a praxe se deve manter como está. 51,5% responderam que a praxe deve ser revista por forma a receber melhor os novos alunos, 67,4% entendem que deve rejeitar qualquer forma de violência e 71,7% acham que deve ser facultativa e respeitar quem não quiser aderir. Isto mostra como a violência simbólica (e, por maioria de razão, a física) é rejeitada pelos estudantes.

Finalmente, a questão do sexismo. Como se sabe, a cultura machista e ‘viril’ é típica de ambientes masculinos e celibatários, como era a Universidade portuguesa até aos anos sessenta do século passado. Mas, hoje, perante uma Universidade fortemente feminizada, é no mínimo desajustada a presença desse mesmo sexismo, borguista e marialva. E no entanto eles aparecem aqui ostensivamente em todo o seu esplendor. Repare-se: primeiro, não há uma única mulher entre os figurantes. Depois, note-se, os três personagens da primeira fila – os caloiros – não apenas aparecem nas suas poses ridículas perante o gozo dos restantes “matulões”, como as vestes e adereços que usam lhes conferem um aspecto feminino. Assim, a feminilidade é atingida de duas maneiras: apagam completamente mais de 60% de estudantes da UC que são raparigas, ao mesmo tempo que os alvos da chacota são rapazes travestidos de meninas. Esta cultura de pseudo-virilidade machista continua a ser exibida, com o seu lado violento bem visível nos objectos de “tortura” e na pose ameaçadora dos mais velhos sobre os mais novos.

Pergunta-se: até quando as estudantes desta universidade vão aceitar passivamente ser excluídas e humilhadas pela cultura machista e conservadora que continua a dominar o mundo estudantil? É tempo de um verdadeiro movimento feminista se impor na Universidade de Coimbra. Porque isto não é uma mera situação pontual. É apenas o reflexo de um panorama geral em que a representação das mulheres nas estruturas associativas dos estudantes e nos órgãos de gestão da universidade é praticamente nula. É a presença de uma mentalidade anacrónica, que continua a remeter o género feminino para um papel secundário ou meramente decorativo.