M!CporCoimbra

2007/10/26

Envergonhadamente e a bem da Nação




( Hoje no JN )

Mário Contumélias, Docente universitário

Exm.º Sr. Presidente do Conselho, Perdoará V. Ex.ª o meu atrevimento, mas achei que era meu dever informá-lo. Sei que o sr. dr. anda muito ocupado e que os seus colaboradores não lhe dizem a verdade, mas olhe que Portugal não anda bem. E o pior é que não dá sinais de poder vir a melhorar, pelo menos a curto prazo. É que são tantos os males de que padece, que o díficil é saber por onde começar as queixas. Quanto ao tratamento e à desejada cura, sei que não convém termos ilusões, exagerar nas esperanças; o trágico fica-nos melhor, por isso é que somos o país do fado.

V. Ex.ª desculpe, é certo que já todos sabemos dos nossos "podres" e que não é bem educado andar sempre a falar neles. Além disso, reconheço que persistimos em olhar as coisas pela negativa e que nos falta um pouco de saudável optimismo. Para mais, esquecemo-nos de que é preciso deixar o Governo trabalhar tranquilamente e olhar as questões com elevação. Mas não é fácil.

É que continuamos a ser um país campeão da Europa das desigualdades, embora não me lembre de ouvir falar muito sobre isso durante esta presidência portuguesa da União; provavelmente, porque andavam todos muito ocupados em conseguir que houvesse tratado de Lisboa e fosse aprovada a "flexisegurança". O que foi bom porque, por cá, e até ver, o que temos é "flexinsegurança" e não gostamos, desculpe a minha franqueza. Veja o senhor presidente do Conselho que temos uma das mais elevadas taxas de desemprego da UE, mas a protecção aos desempregados é das mais baixas. Mais, V. Ex.ª não vai acreditar, mas temos também uma das piores taxas de licenciados, porém 50 mil continuam sem trabalho.

Além disso, dez por cento da população, dois milhões de pessoas do povo, vivem abaixo do limiar da pobreza, o que até envergonha o nosso presidente da República. Confesso, Excelência, que ao princípio me surpreendeu a reacção do presidente; achei que ele devia indignar-se, exigir consenso nacional, medidas eficazes para resolver o problema... Entretanto, percebi. Devemos é ter vergonha na cara...

Porque, está a ver, não há outra maneira de reagir ao facto de ser possível ficar cinco anos à espera de uma consulta de hospital, ou de ter de aguardar pacientemente por uma intervenção cirúrgica, para lá do clinicamente admissível; uma pessoa arrisca-se até a morrer antes de ser atendida e isso é aborrecido. E há portuguesas, desta não sabe o sr. presidente do Conselho, de certeza absoluta, que vão ter os filhos a Badajoz, armadas em novas-ricas; o que vale é que há umas que se atrasam e têm os filhos na estrada, que é para aprender. E também há quem vá operar os olhos a Cuba, uma terra de comunistas, veja V. Exª. Isto para não falar dos professores, esses privilegiados, que só porque têm uma doença grave, querem logo ir para o quentinho da reforma e que, pior, muito pior, se atrevem a criticar o chefe sem ser no segredo da sua casa, como nos ensinou a senhora secretária de Estado que se deve fazer. Uma verdadeira vergonha.

Tinha muito mais para lhe contar, mas sei que o tempo de V. Ex.ª é precioso. Por isso, confesso-lhe só que estou preocupado com o que afirmou, outro dia, o sr. procurador-geral da República. Isto tem de estar mesmo mal, para o dr. Pinto Monteiro ter sentido a necessidade de dizer ao país o que disse. Acho que ele fez muito bem, o povo gosta de quem lhe diga a verdade, mesmo se ela for incómoda. Peço é a V. Ex.ª que faça o favor de ter cuidado. Quem sabe, talvez o seu telefone...

Bom, não lhe roubo mais tempo. Um dia destes, escrevo-lhe outra vez, se não achar abuso da minha parte. Até lá, despeço-me.

Envergonhadamente e a bem da Nação.

Mário Contumélias escreve no JN, quinzenalmente, às sextas-feiras