M!CporCoimbra

2007/10/14

Recuar, recuar, recuar sempre

Cipriano Justo, no Público de 13/10/07

Como este governo não tem por hábito jogar aos dados - percebe-se
que as decisoes são preparadas, enquadradas e criteriosamente
divulgadas, obedecendo a uma intenção reflectida e procurando
influenciar os acontecimentos para além dos efeitos imediatos -,
a possibilidade agora dada aos médicos dos serviços públicos
de saúde de exercerem a sua actividade a tempo parcial é a outra
face do controlo electrónico da assiduidade, já iniciado em varios hospitais.
No seu conjunto, os dois lados desta moeda representam mais um
recuo do Serviço Nacional de Saúde, a par de outros que este
governo vem dando mostras, concomitantes com a progressão do sector
privado hospitalar. O sinal político desta medida é tão simples como isto -
por vontade do governo o SNS só fica obrigado a cumprir, vá lá, metade
das suas obrigações para com os portugueses, e os bancos e as seguradoras
que façam o resto.
Se no plano dos valores o controlo electrónico da assiduidade representa
uma usurpação, por parte do Estado, da capacidade de auto-regulacao
dos médicos, na perspectiva da organização da produção de cuidados de
saúde é o reconhecimento de que se abandonou a estratégia da c
ontratualização, nomeadamente da contratualizaçãoo interna,
substituindo-a por mecanismos que visam formatar pela via do
comando e controlo centralizado o funcionamento dos hospitais e
centros de saúde.
Atrofiam-se os instrumentos de responsabilização individual
e retira-se competência e capacidade de negociação à gestão intermédia
em nome do espírito e da disciplina de caserna.
O controlo electrónico da assiduidade é o indicador do que vai no
pensamento deste governo sobre politica de saúde - recuar, recuar, recuar
sempre, mas cronometrado ao segundo.
Alguns indicadores de actividade do que se faz no sector público hospitalar
e no sector privado hospitalar são particularmente elucidativos para se
perceber melhor o alcance desta medida e os efeitos que ela vai ter no
ordenamento do sistema de saúde português.
Em cinco anos, por exemplo, e de acordo com os dados do
Instituto Nacional de Estatística, enquanto os efectivos médicos dos
hospitais públicos cresceram 8%, os efectivos do sector privado
hospitalar cresceram 20%; o volume de consultas externas
aumentou 25% nos hospitais públicos e 20% nos hospitais privados, os
internamentos aumentaram 4% nos hospitais públicos e 7% nos hospitais
privados, as cirurgias tiveram um crescimento de 17% nos hospitais
publicos e 19% nos hospitais privados, as análises clínicas viram o
seu volume aumentar 21% no público e 128% no privado, a imagiologia
cresceu 21% no público e 47% no privado, a fisioterapia diminuiu 5% no
público e aumentou 18% no privado e, finalmente, as endoscopias
cresceram 40% no público e 182% no privado.

Estes valores dizem-nos que estamos perante um sistema de saúde a duas
velocidades: o SNS a desacelarar e o sector privado hospitalar em franco
crescimento. Financeiramente esta desigualdade é dada pelo crescimentos de
20% na despesa do SNS nos últimos cinco anos e pelo aumento de 42% na
despesa com a aquisição de produção de cuidados ao sector privado, no mesmo
período. Significando que muita produção deixou de ser realizada no sector
público para ser adquirida ao sector privado com o dinheiro do orçamento do
SNS. O parente pobre do SNS continua a ser as despesas com pessoal que,
comparativamente, no mesmo período cresceram 18%.

Em vez de criar condições de trabalho e remuneração para atrair e fixar os
médicos nos serviços públicos, o governo opta pelo que lhe é mais fácil: um
parte time nos hospitais.
Os bancos e as seguradoras agradecem e aplaudem
mas dificilmente os portugueses poderão concordar com esta medida.

Dirigente da Renovação Comunista