Declaração de voto de Manuel Alegre
Votação na generalidade
1. Já por várias vezes afirmei que, de acordo com a Constituição, o Deputado deve votar segundo a sua consciência e é responsável perante o país. Contudo, sendo eleito em listas partidárias, há situações em que, salvo circunstâncias excepcionais, não deve quebrar o sentido de voto do seu Grupo Parlamentar: programa de governo, moção de confiança e moção de censura, Orçamento de Estado. É por essa razão que dou o meu voto favorável, na generalidade, ao Orçamento de Estado para 2008, segundo a orientação do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, embora não possa deixar de manifestar algumas discordâncias relativamente às políticas nele expressas.
2. Um Orçamento de Estado é muito mais do que um documento técnico que prevê receitas e despesas da actividade dos vários órgãos do Estado. É um documento político que traduz as opções da acção governativa em todos os domínios e, em especial, no plano económico e social. Discordo de uma concepção predominantemente financeira dos orçamentos de Estado. Reconheço a prioridade quase absoluta da redução do défice, que foi apanágio dos Orçamentos de 2005, 2006 e 2007. Havia compromissos europeus a cumprir e a fragilidade económica de Portugal não lhe facilita posições de "desafio" a essas regras, como o fazem alguns dos chamados "países grandes". Também não podemos esquecer que os Governos do PSD, para camuflar o défice real, recorreram a expedientes e artifícios que em nada ajudaram a criar confiança. Há pois que felicitar este Governo por ter encarado de frente o problema do défice e o ter praticamente resolvido, mas com grande sacrifício de todos os portugueses, como o próprio Primeiro Ministro já reconheceu.
3. Além do défice orçamental, outros défices têm de ser combatidos, a começar pelo défice social. O desemprego não para de aumentar ( 8,3% em Agosto ). Somos já o quinto país da União com maior taxa de desemprego tendo ultrapassado a Espanha, pela primeira vez nos últimos anos. A pressão fiscal muito elevada está a ter resultados negativos na economia e está a sacrificar os cidadãos com perda de poder de compra e de qualidade de vida. As dificuldades com o sobre-endividamento das famílias são muitas. De que serve termos um défice de 3% se continuamos a ser o país mais pobre da Europa e o mais desigual a distribuir a sua riqueza ?
Mais de dois milhões de portugueses, cerca de um em cada cinco, tem rendimentos abaixo do limiar de pobreza. A constatação parece evidente: apesar do desenvolvimento registado nos últimos anos, apesar do défice finalmente controlado, apesar das ajudas comunitárias que todos os dias entram em Portugal, apesar dos milhões de euros que mensalmente os bancos obtêm em lucros, nada parece conseguir mudar a persistência da pobreza. Segundo o INE, 41% da população portuguesa, cerca de 4 milhões de pessoas, vive numa situação de risco de pobreza antes das transferências sociais ( pensões de reforma, sobrevivência, doença e incapacidade, família, desemprego e inserção social ). Após as transferências, o número cai sensivelmente para metade. A questão é que estas pessoas apenas resolvem momentaneamente o seu problema de privação, mas não a pobreza.
Existe ainda um fenómeno novo, que as estatísticas de 2005 ainda não conseguem reflectir, mas que a realidade social evidencia: a emergência de novos pobres, pessoas que não ganham o suficiente para pagar as suas contas ao fim do mês nem para liquidar os créditos e responsabilidades financeiras que assumiram (crédito à habitação, crédito ao consumo e outros). Esta situação resulta na maioria dos casos da perda do emprego, mas também da subida das taxas de juro e do próprio aumento do custo de vida. Este é um diagnóstico cruel da sociedade portuguesa. A pobreza em Portugal é um facto estrutural que sucessivos governos ao longo dos anos não têm conseguido resolver.
4. Embora considerando muito importante o reforço de algumas medidas concretas no âmbito das Políticas Sociais ( por exemplo, o alargamento do complemento social para idosos ) estas medidas acabam por ser medidas de “remendo” de um problema. Há que reforçar as medidas de combate ao desemprego e de apoio ao crescimento e criação de Emprego. A proposta de diminuição de 5% do IRC para as empresas do interior do país é positiva, mas insuficiente para contrariar o processo de desertificação, agravado por medidas tomadas recentemente pelo governo, que eu próprio critiquei, como o fecho de serviços públicos nas áreas da saúde e da educação.
5. O emprego constitui hoje o nosso problema número um. Sabe-se que uma alteração do nível de desemprego só poderá conseguir-se com uma política agressiva de investimento. Neste aspecto o Orçamento é bastante decepcionante. É certo que não cabe ao Estado criar emprego directamente, antes deve definir horizontes e estratégias que permitam ao tecido empresarial fazê-lo. O actual Governo, tal como os anteriores, tem beneficiado largamente o sector privado, concedendo-lhe amplos incentivos financeiros, fiscais e outros. Apesar disso, os resultados ficam sistematicamente aquém das expectativas. Não temos tido empresários à altura, ou não os temos em número suficiente. Continuamos a assistir a um permanente coro de lamentações, com o sector privado a tentar obter do Estado mais benesses públicas. Os exemplos recentes e anunciados da REN, da GALP e da EDP confirmam amplamente o estado de espírito dos chamados "grandes empresários" portugueses. Assumir qualquer risco não é com eles. Não temos que nos admirar pois, salvo raras excepções, tem sido assim desde o tempo da venda dos bens nacionais que se seguiu à vitória dos Liberais em 1834. O progressivo abandono pelo Estado de todo o sector energético nacional levar-nos-á a uma situação de total dependência de interesses não portugueses e a uma cada vez mais reduzida capacidade de intervenção em áreas fulcrais da nossa economia. Esta política não serve o interesse nacional, ainda que possa proporcionar alguns euros suplementares aos cofres do Estado. Agora que o sector privado domina completamente a economia portuguesa (ficam de fora os transportes, porque não dão lucro, a Caixa Geral dos Depósitos e pouco mais), seria essencial que o sector empresarial privado assumisse a principal parcela na criação de emprego. O actual sistema de incentivos ganharia em ser objecto de uma profunda revisão, que poderia ser explicitada no Orçamento.
6. Não concordo com as exigências daqueles que todos os anos reclamam mais cortes na despesa em nome de uma pretensa reforma da Administração Pública, que passaria pela dispensa maciça de funcionários públicos e pela degradação das funções sociais do Estado. Considero positivo que, desta vez e ao contrário do que vinha acontecendo, o Orçamento para 2008 proponha repor o poder de compra perdido pelos funcionários públicos nos últimos anos. Mas a proposta de aumento de 2,1% anunciada para a função pública é inferior à inflação de 2,3% estimada para este ano, o que significa que ainda não será em 2008 que os funcionários públicos recuperarão o que perderam em sete anos sucessivos.
7. Considero positivas as medidas anunciadas no sector da saúde, em especial o financiamento da procriação medicamente assistida. Discordo, contudo, da opção de agravar a carga fiscal de deficientes e pensionistas O aumento da carga fiscal sobre os reformados não está limitado às pensões mais elevadas, aplica-se às pensões médias e médias baixas. Os reformados ficam assim duplamente penalizados: por um lado, pelo aumento directo do imposto sobre a sua reforma; por outro, pela diminuição da comparticipação dos medicamentos ( com a retirada da majoração nos genéricos). Alguns destes aspectos poderiam ser melhorados na especialidade. Quanto às famílias, o Orçamento aumenta para o dobro a dedução à colecta no IRS para crianças até aos 3 anos. Porquê 3 anos? Não se percebe o critério. As famílias com filhos mais velhos não têm qualquer beneficio directo com a medida. Não podemos entretanto ignorar que 42% das famílias com 3 ou mais filhos em Portugal estão, segundo o INE, no limiar da pobreza.
8. No plano económico e militar, Portugal pode não pesar muito. Mas tem a seu favor uma riqueza que não pode continuar a ser menosprezada: a história, a cultura e a língua portuguesa. Entre os países do mesmo peso demográfico, somos o único que pode ser no mundo um actor global. Mas no plano cultural temos vindo a perder terreno por falta de comparência. Onde nós fechamos leitorados e centros culturais, outros avançam com os seus institutos. Há um défice nacional de reflexão e visão estratégica que está a atingir graves proporções. As Grandes Opções do Plano para 2008 e o relatório do Orçamento de Estado apontam para uma política cultural externa capaz de ampliar a oferta da aprendizagem da língua e cultura portuguesas. A tradução desta prioridade em números tem no entanto uma expressão residual. As medidas do PIDDAC relacionadas com a difusão da língua e cultura portuguesas no mundo, a afirmação da dimensão cultural do desenvolvimento e o fomento de redes culturais somam perto de 5 milhões de euros, um montante que não chega a 0,2 por cento do total das verbas do PIDDAC. É manifestamente insuficiente, senão mesmo irrisório. Não podemos continuar a sobrepor critérios contabilísticos a critérios culturais e de afirmação nacional.
Lisboa, 8 de Novembro de 2007
O Deputado
Manuel Alegre
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