M!CporCoimbra

2006/08/22

Cuba, Fidel e Transição: Pontos de Vista

Pelo seu interesse, inserimos o artigo de Boaventura Sousa Santos (Coluna - Visão, 11 de Agosto) e o artigo de resposta de Elísio Estanque (em publicação no Jornal de Notícias)

CUBA

Boaventura de Sousa Santos

Cuba está a entrar num processo de transição política cuja complexidade decorre da natureza e duração do regime ainda em vigor, do peso da personalidade de Fidel Castro e da ameaça de intervenção externa por parte dos EUA. Apesar de muitas da promessas da revolução não se terem cumprido e de serem ainda hoje visíveis na sociedade cubana alguns traços do período pré-revolucionário, a revolução cubana continua a ser uma referência fortemente enraizada no imaginário político para muitos dos que lutam contra a injustiça social. Nem os mais ferozes críticos de Cuba ousam equipar Fidel a Pinochet ou o regime de Cuba ao da Arábia Saudita. Quais as razões da perplexidade que Cuba suscita em alguns e do fascínio em outros?

A revolução cubana foi um dos acontecimentos mais notáveis da segunda metade do século XX. Um país empobrecido pela rapina das oligarquias, sujeito à constante tutela norte-americana ciosa em salvaguardar os seus vultuosos interesses económicos, transformado num imenso bordel e paraíso de máfias e governado por um ditador corrupto, Fulgêncio Batista, revolta-se em armas em nome dos ideais igualitários e humanísticos onde se salientam a reforma agrária, o efectivo acesso de todos os cubanos aos direitos à saúde, à educação e à habitação e a luta contra a dominação estrangeira. O êxito da revolução foi uma luz de esperança para milhões de latino-americanos oprimidos e explorados, ao mesmo tempo que deixou os EUA estupefactos perante a ousadia do desafio ao seu domínio regional por parte de um pequeno país, para mais situado a poucas dezenas de quilómetros. A reacção não se fez esperar e dura até hoje: invasão (Baía dos Porcos), tentativas de assassinato de Fidel Castro (que incluíram lapiseiras com tinta venenosa e charutos explosivos), guerra biológica (a CIA contaminou a ilha com germens de febre suína africana o que obrigou os cubanos a matar 500 mil porcos), bloqueios militares e o embargo económico condenado pelas Nações Unidas desde o início. Apesar disso, o povo cubano resistiu com êxito e é espantoso que o tenha feito perante um inimigo tão poderoso e tão pouco escrupuloso nos seus meios de ingerência.

O endurecimento ideológico, a dependência da URSS e o seu fim brusco, o embargo e a ameaça sempre iminente de uma invasão norte-americana impediram que muitas das promessas de revolução se realizassem, nomeadamente a democracia representativa e participativa e a melhoria do bem estar económico e social para toda a população. Mesmo assim são conhecidos os êxitos na área da saúde e da educação. A Casa das Américas é uma das instituições culturais mais notáveis de todo o continente, e ao longo de várias décadas a política externa de Cuba pautou-se pela solidariedade internacionalista, de que são exemplo os médicos cubanos que hoje trabalham em muitos países do chamado Terceiro Mundo, e o apoio a Angola na sua luta contra a invasão da África do Sul do apartheid.

Apesar do silêncio público, Cuba é hoje um cadinho fervilhante de ideias sobre a transição. E, pese embora as muitas diferenças entre elas, dois princípios as unem: a defesa intransigente da independência nacional; a busca de uma solução democrática que garanta a continuidade e o aprofundamento das conquistas da revolução. É difícil encontrar no mundo povo mais cioso da sua independência e da sua dignidade. E talvez aqui resida a contribuição mais importante de Fidel Castro para a luta dos povos por uma sociedade mais justa: a dignidade e a altivez de dizer Não à arrogância dos mais fortes. Aqui reside também o fascínio que a revolução cubana continua a exercer.


CUBA: TRANSIÇÃO DE ONDE E PARA ONDE?

Elísio Estanque*

Cuba voltou a atrair as atenções. No mundo conturbado em que vivemos, sempre que se coloca a questão da possível saída de cena do líder histórico da revolução cubana, o problema da “transição” é chamado ao centro da discussão pública, sobretudo pela esquerda, hoje desencantada e sem referências.

O recente artigo de Boaventura de Sousa Santos (Visão, 17/08/2006) revela uma posição que, apesar de alguma ambiguidade – com nuances como a referência às “promessas não cumpridas da revolução” – contemporiza, diria mesmo que simpatiza, com o regime cubano e relativiza o carácter ditatorial da liderança de Castro. E aí reside a minha discordância. Há neste texto de BSS passagens surpreendentes para quem, como eu, partilha muitos dos seus ideais e para quem se recorde das suas posições críticas da ortodoxia comunista. Concordo que Cuba suscita “perplexidade” para alguns, e “fascínio” para outros. Mas enquanto BSS se mostra fascinado, eu, mais do que perplexo, faço parte dos cépticos.

Perplexidade foi também o que senti ao ler que a revolução cubana foi “um dos acontecimentos mais notáveis da segunda metade do século XX (...), uma luz de esperança para milhões de latino-americanos oprimidos e explorados”. Não nego isso. Mas também a China de Mao e a União Soviética, simbolizaram para milhões o “paraíso na terra”, e Estaline foi até celebrizado como “o pai dos povos”. E daí?... A perseguição e prisão de milhares de activistas, jornalistas e dissidentes cubanos têm sido abundantemente denunciados em todo o mundo, e os testemunhos de grandes intelectuais de todos os quadrantes ideológicos há muito mostraram o tipo de sistema que vigora em Cuba (o próprio Che Guevara chegou a criticar, após o seu afastamento, o culto da personalidade promovido por Fidel).

BSS assinala a complexidade do processo de transição, mas logo no passo seguinte cai na simplificação. Obviamente que o boicote generalizado que os EUA impuseram a Cuba teve e tem efeitos devastadores sobre a débil economia cubana. Mas, quando, ao lado de outros aspectos, se refere a “dependência da ex-URSS e o seu fim abrupto” como uma das razões das promessas não cumpridas da revolução, poder-se-ia concluir que, nesse caso, um dos requisitos do êxito da revolução cubana seria a perpetuação do império soviético. Sei que o autor não defende isso, claro. Mas a sua formulação admite essa leitura.

Por outro lado, embora BSS se refira também ao “endurecimento ideológico” do regime, não retira daí as devidas consequências. Como se isso fosse uma questão menor. Além disso, mais do que a existência de “traços do período pré-revolucionário” importa saber os problemas gerados pelo próprio regime castrista. Para mim, a pobreza e a falta de liberdade são, acima de tudo, resultado da perversidade do sistema. Um sistema ditatorial de inspiração comunista, com as suas especificidades culturais e históricas próprias, e as particularidades carismáticas do seu líder. Num quadro em que a democracia não existe e os direitos humanos são diariamente agredidos, a imprensa manipulada pelo governo e os (poucos) utilizadores da Internet sujeitos a apertado controlo, qual o real significado do “bom” funcionamento dos sistemas de saúde e de educação?! A opção não pode ser nunca entre o pão e a liberdade. Aliás, em Cuba ambos estão ausentes. E a liberdade não tem preço.

Quando, em Fevereiro passado, estive em Havana durante uma semana (num congresso sobre «Universidad 2006 – La Universalización de la Universidad por un mundo mejor»), tive o privilégio de observar alguns dos paradoxos da sociedade cubana. De um lado, os longos discursos oficiais a emular a revolução e o seu líder, a glorificar o sucesso do sistema educativo (aplaudidos por Fidel, que lá estava em pessoa, na sessão inaugural), a resistência ao embargo, etc, etc. De outro lado, o contacto diário com os bairros pobres, as ruas esburacadas, as casas a cair e o povo carente. A ansiosa procura do turista em busca da esperada “recompensa” monetária, a oferta sexual por parte das meninas que rodeiam os hotéis, o relato de alguém que pagava uma prestação ao quadro partidário que lhe arranjou um emprego melhor, as infinitas bichas para o pão e produtos racionados à porta das “bodegas” do povo, etc, etc. Este contraste foi chocante. E para mim reflecte o contraste entre o socialismo tal como é pintado pelo regime e a dura realidade da vida do povo.

Não posso, pois, subscrever qualquer solução de continuidade, nem mesmo o “aprofundamento” da revolução. Ninguém sabe o que irá seguir-se. Pessoalmente, prefiro uma solução democrática, isto é, uma solução que garanta independência, bem-estar, desenvolvimento e liberdade política para Cuba.

* Sociólogo, Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra
http://boasociedade.blogspot.com
estanque@fe.uc.pt

7 comentários:

  • Gostei do texto de Boa Ventura Sousa Santos! Expressa as pulsações dos cubanos que me foram transmitidas, recentemente, por uma cubana. Foi para fora de Cuba trabalhar, mas gosta do seu país, preocupa-se com Fidel e acredita na revolução. E talvez volte. Ali, em Espanha, ninguém a obriga a dizer nada. Quando fala de Cuba e da revolução, sorri.

    Pedro

    By Blogger Pedro Monteiro, às terça-feira, agosto 22, 2006 6:34:00 da tarde  

  • Sim Pedro,
    Mas já pensaste que, se calhar, ela sorri porque conseguiu sair de lá... não tem de viver com 12 dolares por mes. E alem disso em Espanha ela pode dizer o que pensa!

    By Anonymous Anónimo, às sexta-feira, agosto 25, 2006 12:13:00 da tarde  

  • Mas repare que ela teve um discurso totalmente oposto a quem não-tem-de-viver-com-12-dolares-por-mes-E-alem-disso-em-Espanha-ela-pode-dizer-o-que-pensa! Foi isso que me impressionou! Muito. Quando ela falou do Fidel Castro não houve ali qualquer rancor. Quando eu disse que gostava de visitar Cuba brevemente e ver como viviam as pessoas ela ficou extremamente contente. Mais uma vez, impressionou-me. A questão essencial é: pode o comunismo explicar sozinho que se passa em Cuba? Ou o facto de haver um embargo norte-americano (e, indirectamente, de alguns dos vizinhos da A. Latina) implica um grande esforço para a economia cubana? No panorâma da A. Latina, Cuba não será, ainda assim, similar a tantas outras democracias? Vejamos o caso da Argentina e do Brasil: intocáveis enquanto ditaduras militares e grandes aliadas dos EUA, pouco (ou nada) melhores que Cuba. Eu não estou a defender a pobreza ou o miserabilismo. Agora, Cuba sem o comunismo, provavelmente, não estava melhor. E, penso, sem uma transição gradual e sustentada, vai ficar igual ao que era antes de Fidel Castro.

    Pedro

    By Blogger Pedro Monteiro, às sábado, agosto 26, 2006 11:20:00 da manhã  

  • Caro Pedro,
    Compreendo as tuas duvidas e eu também partilho algumas delas. Vamos ver: 1. em abstracto concordo que não se pode atribuir ao comunismo as culpas do que se passa, pois -- na teoria -- esse modelo era suposto ser amplamente democractico e participado. Porém, os mecanismos de poder e a tendência dos líderes em exercer/ impor a sua vontade acaba por perverter o sistema, isto é, a discussão interna (no partido) está viciada a partir do momento em que o desacordo dê lugar a expulsão ou prisão (isto, seja em Cuba ou noutro pais qualquer); 2. eu também receio que, apesar dos problemas do país, o que vier a seguir pode ser ainda pior, sobretudo se os EUA se meterem outra vez com Cuba; 3. tambem acho que uma transição gradual e sustentada poderia ser um caminho para se encontrar uma alternativa. Não acredito é que essa transição gradual tenha sucesso, em especial se for controlada pelo actual regime; 4. finalmente, concordo ainda contigo relativamente à miseria, pobreza e exploração que existe noutros paises, na A. Latina e não só. Mas a questão que me incomoda é o alinhamento algo dogmático e acritico de um certo sector da esquerda (não de toda), perante o discurso de eterna vitimização do regime de Fidel...
    Um abraço

    By Anonymous Anónimo, às sábado, agosto 26, 2006 3:24:00 da tarde  

  • Fique claro: eu referia que sem o comunismo tal e qual foi praticado por Fidel Castro (com as suas qualidades e muitos defeitos), arrisco dizer que Cuba não estaria melhor. Não nos esqueçamos que há uma dupla moral nas relações internacionais: Cuba é uma ditadura onde pessoas são presas sem justa causa e torturadas, porém, na mesma ilha, os Estados Unidos mantém a base de Guantanamo onde fazem exactamente o mesmo (por agora, pensa-se que apenas com os "terroristas", qualquer que seja a definição que os EUA tenham encontrado no lugar da ONU). E os EUA são, para muitos, um exemplo de democracia e liberdade de expressão. Quando a comunidade internacional - nomeadamente a UE - é leva a monotorizar as últimas eleições presidenciais nos EUA (depois do sucedeu com Al Gore), então, podemos questionar-nos se os EUA são verdadeiramente democráticos. Quando a população americana tem os seus telefonemas, e-mails, correspondência monotorizados, podemos questionar-nos se os EUA são verdadeiramente democráticos. Se os EUA (e aqui, mais uma vez, se vê a semelhança com a intervenção de Cuba em Angola) fazem intervenções militares em países soberanos à margem do direito internacional e da ONU, podemos questionar-nos se os EUA são verdadeiramente democráticos.

    O que eu digo é uma coisa: o último país com moralidade para criticar Cuba, pedir uma transição democrática ou impôr embargos que (como sempre) afectam os desfavorecidos são os EUA.

    Não nos podemos também esquecer de um aspecto que explica a acentuada crise económica que se vive em Cuba: o fim das ajudas de Moscovo com a extinção da URSS. Agora, imagine-se o que sucederia a Israel caso deixassem de existir as ajudas eocnómicas dos EUA (o resto, parece-me, é incomparável)...

    Pedro

    By Blogger Pedro Monteiro, às domingo, agosto 27, 2006 10:48:00 da manhã  

  • Pedro,
    concordo com o que diz sobre os EUA, a sua arrogância perante os povos, o seus constante desrespeito pelos direitos humanos e pelo direito internacional, os ditadores que forjaram na América Latina e no mundo, as agressões e o embargo a Cuba, etc, retira-lhes qualquer legitimidade para falar de transição democrática.
    Agora o que eu nao subscrevo é de facto o fascinio sobre o sistema cubano, por parte de uma certa esquerda: aquela foi sem dúvida uma experiencia importante para se perceber o que falha num sistema socialista ou "alternativo" ao capitalismo, mas temos de olhá-la com distanciamento crítico para retirar daí a necessária aprendizagem. Por exemplo, quando se aponta o ex da solidariedade de Cuba com Angola, é preciso verq ue Cuba foi sobretudo um instrumento de uma potencia externa com fortes interesses em Angola e em África... Aliás, acho que precisamos de retomar o debate sobre os socialismo, o comunismo e a experiencia da ex-URSS, porque acho que é aí que reside a raiz do problema.

    By Anonymous Anónimo, às segunda-feira, agosto 28, 2006 1:07:00 da tarde  

  • Sim, claro. Até porque há uma diferença clara entre o socialismo e o comunismo e até entre os dois e a social-democracia. E mesmo entre o comunismo europeu (que condenou a intervenção da URSS em Praga) e o comunismo ortodoxo. A bem dizer, na actualidade, o socialismo é social-democrata (no sentido, de não querer implementar um programa socialista pela força). Infelizmente, nunca assistimos a uma concretização do sistema socialista como ocorreu com o comunismo. A única experiência que se aproximou decisavemente do mesmo, penso, foi o programa de Allende no Chile. Uma democracia que, sem ironia, os EUA acharam que podiam mudar. À esquerda socialista e democrática, penso, falta uma Cuba sua, daí a paixão que ela desperta entre a esquerda. É uma utopia.

    Agora, que a educação em Cuba é um sucesso, parece-me um dos poucos aspectos a elogiar no sistema comunista cubano. Com efeito, a população cubana está muito melhor capacitada que muitos países da A. Latina para um processo de liberalização e democratização. Há pessoas mais conscientes e informadas, mais cultura. Não é por acaso que, com algum humor, Fidel diz que "as nossas prostitutas são as mais cultas do mundo"...

    Pedro

    By Blogger Pedro Monteiro, às segunda-feira, agosto 28, 2006 9:00:00 da tarde  

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