M!CporCoimbra

2008/12/26

Em defesa do público nos serviços públicos

Mesa do painel "Economia" do Fórum de 14 de Dezembro divulga resultados: "Estes debates foram o primeiro passo"

Jorge Bateira, José Castro Caldas, Alexandre Azevedo Pinto, José Reis e João Rodrigues,
economistas e André Freire, politólogo / Público, 24.12.2008

Participámos no painel sobre economia do encontro Democracia e Serviços Públicos. O debate tornou claro que o pluralismo das esquerdas não tem de ser sinónimo de falta de diálogo e de cooperação. Este encontro demonstra que há muita gente (nos partidos de esquerda e independentes) que entende que a excepção portuguesa da incomunicabilidade e da ausência de cooperação entre as esquerdas não é um problema insuperável. As convergências fazem-se com
diálogo aberto sobre os pontos de concórdia e discórdia.
Entre as esquerdas, o pluralismo é positivo e enriquecedor, desde que sem sectarismos.
Mais: muitos como nós pensam que a resposta política para boa parte dos problemas com que hoje o nosso país está confrontado passa por entendimentos entre as diferentes correntes da esquerda.
No âmago da divisão entre esquerda e direita está a valorização da igualdade das condições e oportunidades de vida. Isto não significa que todas as direitas sejam necessariamente inigualitárias. Mas há uma direita para quem a única igualdade seria a igualdade perante a lei que, rejeitando a acção política para promover a igualização das condições e oportunidades de vida, prefere confiar fundamentalmente no mercado. As esquerdas, pelo contrário, olham para o Estado como um instrumento crucial da promoção da igualização das condições e das oportunidades de vida.
Não se trata de defender o predomínio do Estado sobre os indivíduos. Do que se trata é de defender um papel fundamental para o Estado na área dos serviços públicos (saúde, educação e segurança social) e também em sectores estratégicos da economia, nomeadamente nos chamados "monopólios naturais".
Não se trata apenas de melhor servir o desiderato da igualdade. O que está em causa é também um modelo de desenvolvimento: o investimento privado é uma componente central da economia, devendo ser fortemente apoiado nos sectores que produzem bens e serviços transaccionáveis, não apoiado nos sectores protegidos da concorrência internacional e indesejável nos serviços públicos e nos monopólios naturais.
No processo de privatização da provisão de serviços públicos, o Estado transforma-se no que já foi designado de "Estado Predador" - uma coligação de interesses económicos rentistas que prosperam no quadro de um regime de acumulação baseado na expropriação dos recursos públicos.
O caso português é ilustrativo. Na sequência do processo de privatizações (re)constituíram-se em Portugal grupos económicos que se caracterizam precisamente pelo acantonamento na produção de bens não transaccionáveis e pela penetração crescente na esfera da provisão de serviços públicos.
As consequências de tudo isto estão à vista nos países onde o processo foi levado mais longe: fractura social entre os que têm acesso (à saúde, ao ensino e à protecção face aos riscos de desemprego) e os que não têm. Onde o processo ainda vai a meio é patente o aumento do custo e a degradação da qualidade dos serviços (anteriormente) públicos.
Em Portugal, que de há décadas a esta parte continua a situar-se entre os campeões das desigualdades na distribuição de rendimentos em toda a UE e onde os salários continuam tão baixos que um terço dos beneficiários do "rendimento social de inserção" trabalha, a qualidade e a universalidade dos serviços públicos está também sob pressão.
Contrariando uma certa imagem construída pelos seus adversários, de que as esquerdas
socialistas seriam um movimento "bota-abaixista" desprovido de propostas exequíveis, o debate permitiu identificar acordos em torno de algumas linhas de política:

O reconhecimento da centralidade do papel do Estado

Esta centralidade não deve ser confundida com o papel que o Estado actualmente desempenha na socialização das perdas do sector financeiro. A designação "Estado estratega" foi já utilizada para caracterizar o que agora, em contexto de crise, mais do que nunca é necessário: um Estado que em nome do interesse público reassume o controlo de sectores estratégicos, se responsabiliza pela provisão de serviços públicos e pela gestão do território, e utiliza os meios de que dispõe para incentivar e enquadrar o investimento privado.

Valorização do serviço público

Em desacordo com as teorias e as práticas da "nova gestão pública", que tão influente se tornou entre nós dando origem a mais conflitos do que reformas, subscrevemos o que um de nós afirmou: "O nosso país não está condenado a escolher entre serviços decadentes e burocratizados, de um lado, e a erosão do Estado conduzida segundo a ideologia gestionária da modernização, do outro."
Existem formas de modernizar a administração pública que, não reduzindo os servidores do Estado à condição de oportunistas e egoístas, podem nutrir os valores e os significados característicos da ética de serviço público. Os funcionários podem e devem ser mobilizados para garantir o sucesso de quaisquer reformas.

Combate à desigualdade pela valorização do trabalho

A direita procura reduzir o combate à desigualdade à provisão de mínimos de subsistência para os que não podem trabalhar, ou a uma redistribuição do rendimento compensatória. O caso português é ilustrativo das limitações das políticas sociais meramente reparadoras. Para a direita, a determinação do valor do trabalho deveria ser deixada ao mercado. Em alternativa, entendemos ser necessário promover a desmercadorização do trabalho através de regras que protejam os trabalhadores, combatam a precariedade e garantam salários dignos. O desemprego deixou já de ser o principal mecanismo gerador de pobreza, o próprio sistema produtivo voltou a produzir, a par de mercadorias, trabalhadores pobres.
Queremos acreditar que estes debates foram o primeiro passo de um processo que dê aos portugueses razões para enfrentarem o futuro com mais confiança.