M!CporCoimbra

2007/11/24

O sindicalismo e a conflitualidade social

( Elísio Estanque, Centro de estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra )

Uma das particularidades e vantagens históricas da Europa “social” em relação a outras regiões do globo reside na sua longa tradição conflitual. No berço da civilização ocidental a fantástica capacidade inventiva e técnica sempre se conjugou com as intensas lutas sociais que revolucionaram a sociedade moderna. Foi na base desse binómio que o contrato social triunfou como modelo fundamental de regulação de conflitos, e evoluiu apoiado em compromissos de enorme alcance progressista. O movimento operário e sindical foi, desde o início do século XIX, um dos principais factores de transformação que culminou na fórmula do Estado social europeu. Por isso, o modelo europeu de relações laborais se tornou ao longo do século XX uma referência incontornável para o mundo inteiro e um garante vital da saúde das nossas democracias.

O sindicalismo representa, pois, uma conquista importantíssima que não é apenas da classe trabalhadora, mas da sociedade como um todo. E convirá recordar que a sua emergência e a sua pujança derivaram das condições desumanas impostas aos trabalhadores pelo capitalismo selvagem do século XIX. Vale a pena revisitar a história, quando vivemos uma conjuntura de crescente perda de direitos laborais e de ataque constante aos sindicatos. Tal tendência comporta um risco real de regresso ao “grau zero” do contrato social, com a generalização do trabalho sem direitos, da hiperexploração e dos abusos patronais em toda a linha.

É preciso olhar para os exemplos da Finlândia e da Dinamarca (bem como os restantes países escandinavos), não para importar a “flexigurança” – que, no contexto português, é sobretudo um discurso para justificar a flexibilidade do trabalho e a liberalização dos despedimentos –, mas para se perceber como o desenvolvimento é inseparável da coesão social, ou seja, de uma cultura que reconheça nas estruturas sindicais um parceiro indispensável, sem o qual as reformas jamais terão sucesso. Nesses países, onde a social-democracia vingou, o reajustamento e flexibilização das relações laborais e do Estado social encaixam num modelo de sociedade previamente negociado na base de compromissos colectivos alargados (e cujos resultados nos planos económico e social são conhecidos). Ora, isso é o oposto do que se passa hoje em Portugal, onde o poder político evidencia uma atitude anti-sindical que vê os sindicatos como meras “forças de bloqueio”, retirando assim qualquer credibilidade à intenção de “adaptar” a flexigurança às condições específicas do nosso país, sem ter de negociar as novas propostas legislativas com a estrutura sindical mais representativa.

Como sabemos, os sindicatos debatem-se com uma profunda crise, que resulta largamente dos processos em curso de fragmentação e fluidez dos sistemas produtivos e de precarização das relações de trabalho e de emprego. É claro que a “crise” deve-se também à incapacidade dos aparelhos sindicais se adaptarem aos desafios do presente, mas esse é um problema que a eles diz respeito. Não compete ao Estado, tal como não compete aos empresários, ajuizar entre o “bom” e o “mau” sindicalismo. Se o “bom” sindicalismo for aquele que está sempre de acordo com o parceiro mais forte, então o que se pretende não é a negociação, mas a simples aceitação.

E com isso alimenta-se, de facto, o confronto. Ou seja, engana-se quem pense que a conflitualidade diminui com a implosão dos sindicatos e que a influência comunista deixa de existir. Não é preciso ler Marx ou ser-se socialista para se perceber que com o desemprego crescente, a perda de poder económico de sectores importantes da classe média e a intensificação das desigualdades, ganharão terreno os sentimentos de revolta e as ideologias anti-sistémicas. Mais, pretender reduzir a CGTP à função de “correia de transmissão” do PCP é prestar um mau serviço não tanto a este partido mas mais à própria central e à pluralidade de correntes que nela (ainda) estão representadas. O sindicalismo, goste-se dele ou não, é ainda o único movimento capaz de contrabalançar a mentalidade tecnocrática hoje dominante. E a sua renovação será tanto mais viável quanto mais se reforce o seu protagonismo, quer nas instituições quer nas lutas sociais que se avizinham. (http://boasociedade.blogspot.com)