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2008/12/29

Obama - As palavras inspiram

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Manuel Alegre, revista " Domingo", Correio da Manhã, 28/12/08

Eu vinha no Vera Cruz, de regresso de Angola, em Novembro de 1963, quando, em pleno mar, chegou a notícia do assassinato do Presidente Kennedy. Pertenço a essa geração: a que foi contemporânea da morte de John Fitzgerald Kennedy, e uns tempos depois, de seu irmão Robert, então candidato à presidência, um e outro odiados pelos segregacionistas. A geração que teve como referência a história de Rosa Parks, a senhora negra que se recusou a ceder lugar a um branco num autocarro em Montgomery. Foi o inicio dum grande movimento contra a segregação, liderado, entre outros, por Martin Luther King Júnior, cujo discurso, “Eu tenho um Sonho”, se tornaria uma das inspirações das nossas vidas e um marco na luta pelos direitos civis. Em 4 de Abril de 1968 Luther King seria assassinado num hotel em Memphis.

No exílio, em Argel, conheci Eldridge Kleawer, um dos líderes do Black Power. E também Carmichael, que após mais uma das suas múltiplas prisões, diria, em 1966: “Há seis anos que gritamos liberdade. Agora vamos começar a dizer Poder Negro”. Nos Jogos Olímpicos de 1968, no México, na cerimónia do pódio dos 200 metros os atletas John Carlos e Tommy Smith, enquanto a bandeira americana subia no mastro, baixaram a cabeça e ergueram os punhos, protestando contra a descriminação racial no seu país. Seriam desclassificados, mas o gesto ficou como um símbolo.
Sim, eu vi, eu pertenço a essa geração e nunca pensei que o sonho de Martin Luther King pudesse tornar-se realidade 40 anos depois, quando um Afro-Americano chamado Barak Obama começou a mudar a América com uma simples frase “ Yes, we can”. Por isso, no dia da sua eleição, apeteceu-me dizer: todos somos americanos. Precisamente o que Jean-Marie Colombani tinha escrito no seu famoso editorial publicado no jornal francês, Le Monde logo após o atentado contra as Torres Gémeas em Nova Iorque. Sublinhou ele então que o massacre de inocentes, causado pela loucura, mesmo com o pretexto do desespero, nunca é uma força que possa regenerar o Mundo. Todos sabemos o que se seguiu e como foi desbaratado, pela Administração Bush, o gigantesco capital de boa-vontade que havia na maior parte do Mundo para com o povo americano.

A insensatez, o desespero, a violência e sobretudo a mentira viraram-se contra a própria América. As armas de destruição maciça que não existiam – e que serviram para justificar uma guerra ilegal e inútil, que causou a morte de centenas de milhares de iraquianos –, a tortura em Abu Ghraib, Guantanamo e nas prisões secretas de “países amigos”, provocaram sérios danos na imagem da América. Ao mesmo tempo que estes princípios fundamentais eram sacrificados – em nome de uma segurança e vitórias militares de sustentabilidade duvidosa a longo prazo –, sobejava a crença, quase religiosa, na infalibilidade dos mercados financeiros.
Também aqui os resultados estão à vista. A grave crise financeira e económica e financeira que vivemos tem o seu epicentro nos EUA e na falta de regulação, que deixou à solta a ganância de banqueiros e prestigiadas instituições financeiras. Todos estamos a pagar essa factura e, em Portugal, infelizmente não fugimos à regra: socializar as perdas e manter os lucros privados.

A vitória de Barack Obama beneficiou, em boa medida, do caminho aberto pela campanha de Howard Dean (candidato democrata derrotado nas primárias das eleições anteriores). Refiro-me à vaga de esperança em torno dessa candidatura e sobretudo aos moldes em que foi conduzida a campanha: o empenho de um grande número de jovens voluntários e de pessoas que se haviam afastado da política e dos partidos, o recurso à nova arma da Internet, tanto na disseminação da mensagem como, sobretudo, na angariação de fundos.
Alguns dos ensinamentos da candidatura de Dean foram aplicados na minha própria campanha presidencial. A generosidade dos voluntários, o recurso à internet, aos blogues, aos sms, ajudaram a suprir as carências financeiras e a ausência de qualquer máquina partidária.

A eleição de Obama é a vitória da América sobre si mesma. Significa que o sonho americano está tão vivo e tão forte que é capaz de derrotar um dos mais fundos preconceitos que ainda hoje afecta as nossas sociedades: o racismo. A vitalidade da democracia americana é uma lição que nos interpela. Também entre nós há racismo. Também entre nós as minorias imigrantes estão longe de ser politicamente representados.

Possivelmente Obama não teria ganho sem a crise que se vive na América. A verdade é que os níveis de desigualdade social criados pelas receitas neo-liberais não eram sustentáveis. Basta dizer que as diferenças de rendimento nos EUA voltaram a ser comparáveis ao período que antecedeu a Grande Depressão. Porém hoje vivemos num mundo globalizado, em que os EUA ocupam uma posição dominante, e daí a exportação, à escala global, desse modelo de injustiça e desigualdade.

Para responder a esta crise torna-se necessário buscar inspiração no exemplo daquele que foi porventura o maior dos presidentes dos EUA: Franklin Delano Roosevelt. As suas respostas políticas (fiscalidade redistributiva, reforço dos sindicatos, elevação do nível geral dos salários, intervenção do Estado em sectores-chave da economia, como as obras públicas) voltam a ser da maior actualidade, e apontam o caminho para a construção de uma sociedade em que haja porventura menos bilionários, mas certamente mais prosperidade partilhada e coesão social.

Os profissionais do cinismo apressaram-se a levantar dúvidas sobre a possibilidade de Obama estar à altura das expectativas. Uma coisa é certa: a sua vitória constituiu, em si mesma, uma gigantesca mudança cultural e cívica. Não é por acaso que em todas as línguas se procura agora uma expressão equivalente àquela que fez renascer a esperança: “Yes, we can”. E também não foi por acaso que Obama respondeu a quem o acusava de ser apenas retórico: “As palavras inspiram”.

Manuel Alegre