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2007/12/12

Eles estão doidos

António Barreto – Público 25 de Novembro


A MEIA DÚZIA DE LAVRADORES que comercializam directamente os seus produtos e que sobreviveram aos centros comerciais ou às grandes superfícies vai agora
ser eliminada sumariamente. Os proprietários de restaurantes caseiros que
sobram, e vivem no mesmo prédio em que trabalham, preparam-se, depois da
chegada da "fast food", para fechar portas e mudar de vida. Os cozinheiros
que faziam a domicílio pratos e "petiscos", a fim de os vender no café ao
lado e que resistiram a toneladas de batatas fritas e de gordura reciclada,
podem rezar as últimas orações. Todos os que cozinhavam em casa e forneciam
diariamente, aos cafés e restaurantes do bairro, sopas, doces, compotas,
rissóis e croquetes, podem sonhar com outros negócios. Os artesãos que
comercializam produtos confeccionados à sua maneira vão ser liquidados.

A SOLUÇÃO FINAL vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias, os
inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão. Ninguém, deste velho
mundo, sobrará. Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os
computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as
receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas
industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado. Estes
exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm Estado-maior em Bruxelas e
regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados
cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela
carismática do Ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem
através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas
certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da
ração e pelos impérios do açúcar.

EM FRENTE À FACULDADE onde dou aulas, há dois ou três cafés onde os
estudantes, nos intervalos, bebem uns copos, conversam, namoram e jogam às
cartas ou ao dominó. Acabou! É proibido jogar!

Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber café em chávenas de
louça, ou vinho, águas, refrigerantes e cerveja em copos de vidro. Tem de
ser em copos de plástico.

Vender, nas praias ou nas romarias, bolas de Berlim ou pastéis de nata que
não sejam industriais e embalados? Proibido.

Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e Porto, como em Vinhais ou
Estremoz, os exércitos dos zeladores da nossa saúde e da nossa virtude fazem
razias semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas, queijos,
compotas, pão e enchidos.

Na província, um restaurante artesanal é gerido por uma família que tem, ao
lado, a sua horta, donde retira produtos como alfaces, feijão verde,
coentros, galinhas e ovos? Acabou. É proibido.
Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal? Proibido.

Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido.

Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o azeite e o vinagre é
proibido. Tem de ser garrafas especialmente preparadas.

Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta, azeite e azeitonas,
alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou. Está proibido.

Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os miúdos acham graça? Acabou.
É proibido.

Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa e umas fatias de
fiambre para servir uma refeição ligeira a um cliente apressado? Proibido.

Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes caseiros é proibido. Só
industriais.

É proibido ter pão congelado para uma emergência: só em arcas especiais e
com fornos de descongelação especiais, aliás caríssimos.

Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros feitos pela
vizinha, uma excelente cozinheira que faz isto há trinta anos? Proibido.

AS REGRAS, cujo não cumprimento leva a multas pesadas e ao encerramento do
estabelecimento, são tantas que centenas de páginas não chegam para as
descrever.

Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de vinho tinto tem de
haver etiquetas a dizer Coca-Cola e vinho tinto.

Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente para cada género.

Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros: não se pode cortar
cebola na mesma mesa em que se fazem tostas mistas.

No frigorífico, tem de haver sempre uma caixa com uma etiqueta "produto não
válido", mesmo que esteja vazia.

Cada vez que se corta uma fatia de fiambre ou de queijo para uma sanduíche,
tem de se colar uma etiqueta e inscrever a data e a hora dessa operação.

Não se pode guardar pão para, ao fim de vários dias, fazer torradas ou
açorda.

Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou croquetes? Proibido.

Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm de ser de plástico,
papel ou tecido.

Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fizeram? Proibido. As
torneiras nas cozinhas devem ser de abrir ao pé, ao cotovelo ou com célula
fotoeléctrica.

As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas duas vezes por dia
e devidamente registadas.

As temperaturas dos frigoríficos e das arcas têm de ser medidas três vezes
por dia, registadas em folhas especiais e assinadas pelo funcionário
certificado.

Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou dos fritos? Proibido.
Tem de ser de plástico ou de aço.

Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim, pode ser. Desde que seja
com facas de cores diferentes, em locais apropriados das mesas e das bancas,
tendo o cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a hora do corte.

O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-se aos mercados e leva
o seu próprio carro para transportar uns queijos, uns pacotes de leite e uns
ovos? Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.

TUDO ISTO, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde.
Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha
da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas
regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, pois claro.

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