A INSTRUÇÃO DO MEDO
Baptista-Bastos
escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt
Os portugueses estão a ser espreitados por todos os sítios, lugares e ângulos, e esta estrutura muito moderna, eficaz e internacional de "segurança" parece torná-los extremamente felizes e, até, levemente excitados. O olho electrónico quase se tornou numa expressão artística: possui todos os moldes, formas, cores e tamanhos. Nos bancos, nos elevadores, nos hospitais, nos bairros mais elegantes, nos corredores dos hotéis, nas repartições, nos Correios, à esquina, no cairel dos edifícios, nas auto-estradas e nas ruas, de dia e à noite, com aviso e sem aviso - lá está ele. Quem sabe se a vigília incide sobre os amores clandestinos, como no belíssimo poema de Daniel Filipe? Asseguram-me que, em breve, estará nos cemitérios. Não por causa dos habitantes; sim para dissuadir quem ouse profanar o pétreo sono dos mortos.escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt
O olho incisivo, inclemente, gélido, implacável, informa, não se sabe bem a quem, daquilo que, modestamente, estamos a fazer. As nossas minudências quotidianas: contemplar os movimentos do andar de certas mulheres, observar os livros expostos em montras, recalcitrar contra a vida infame, são decifradas como sujeito de intriga e apreensão públicas. E "ninguém sabe quantas câmaras nos andam a filmar todos os dias", diz o Expresso num bem organizado texto de Filipe Santos Costa.
José Magalhães tranquiliza-nos: "Isto não é o advento do Robocop." O sossego das almas dura pouco. O secretário de Estado adverte: "Estamos a caminho de uma sociedade onde a videovigilância é utilizada por cada vez mais entidades." Está aqui muito bem fixado o que nos espera. O lirismo das ruas, a épica das noites molhadas em balcões de bares, a frenética agitação triangular entre o Bairro Alto, 24 de Julho e Docas deixam, ou já deixaram, de ser o poema que se procura para se transformar numa perpétua homenagem ao império da desconfiança.
A sociedade, num futuro muito próximo, reduzirá o seu já limitado espaço de liberdade a uma instância insistentemente policiada. Não haverá sociedade como intervenção cultural, relação com o contrário, subdivisão de grupos de interesses, coexistência de sinalizações alternativas. Ser continuamente vigiado liquida o fundamento das instituições democráticas, o qual oscila entre o tratamento igualitário e o tratamento diferenciado. Impossível escapar ao reconhecimento de que caminhamos para uma nova e diferente ditadura, dissimulada em leis de "segurança", de "ordem" e de "autoridade". Não há lugar para o exercício das "referências", porque se deixou de admitir a alteridade. Uma das características sociais reside no direito do indivíduo a não ser "massa", e a recusar a rigidez identitária que a vigilância (pelo medo que lhe subjaz) sugere, impõe e inculca.
( Hoje, no DN )
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