Nota Prévia:
No seguimento do tema que originou o post "Virtudes públicas, vícios privados", parece-me importante transcrever, sobre o mesmo tema, o editorial do Público de 6 de Agosto da autoria de Paulo Ferreira , com o título "Hoje os fumadores, amanhã quem mais?"
"Já que é proibido fumar nos locais de trabalho, por que não ir um pouco mais longe e impedir a contratação de fumadores? Parece apenas mais um passo mas não é. Entre uma coisa e outra há uma diferença abismal.
O debate nasce depois de uma empresa irlandesa ter lançado uma acção de recrutamento de funcionários avisando que os "fumadores escusam de responder". Questionada sobre o caso, a Comissão Europeia acaba de declarar que nas leis comunitárias nada impede que uma empresa discrimine os fumadores. A discriminação é punível se for feita com base no sexo, religião, raça, etnia ou orientação sexual. Mas não é proibida se for feita contra fumadores. E se não é proibida é permitida.
Quando se proibe o fumo nos espaços de trabalho ou outros de acesso público estamos a tentar um equilíbrio entre direitos: a saúde e o bom ambiente dos que não fumam e o prazer, arriscado mas voluntário, dos que fumam. Para isso obrigam os fumadores a matar o vício em espaços próprios ou mesmo na rua, prática que é hoje corrente e pacífica.
Mas quando se decide excluir um candidato a um emprego apenas por ele ser fumador, ainda que tenha um curriculum adequado à função, entramos na esfera do julgamento de comportamentos e opções estritamente individuais. Esse é um passo muito perigoso, que nem as leis anti-tabágicas mais draconianas, como a irlandesa ou espanhola (e a portuguesa está em preparação), ousam dar. Por isso se tem ficado sempre na tentativa de impedir que os direitos dos que fumam esmaguem os dos não fumadores.
Para lá disto, deve um fumador ser punido apenas porque o é? Obviamente que não. O caso da empresa irlandesa e a resposta de Bruxelas abrem essa "caixa de Pandora".
Em Espanha, há quatro anos, foram parar às páginas dos jornais os documentos de um processo de selecção de operadores de caixa para uma cadeia de supermercados, a Sánchez Romero. Nas anotações feitas pelos entrevistadores nos currículuns dos candidatos apareciam avaliações como "cubana e com bigode", "não por ser cigana e feia", "estrangeiro, gordo, parece o Pancho Villa", "pai alcoólico", ou "estrangeiro, mete medo, parece índio".
É óbvio que este tipo de discriminação no acesso ao emprego acontece todos os dias, por mil e uma razões, e de forma não declarada.
O problema novo está na cobertura legal que pode ser dada a este tipo de avaliações, transformando em legítimo aquilo que pode ser aterrador, ainda que se possam invocar critérios empresariais como as faltas por doença, que são em número superior no caso dos fumadores. A questão está em saber se é esse o caminho que queremos seguir, reservando o futuro a seres humanos perfeitos, sem vício nem mácula, sem doença nem defeitos, feitos a a partir de um qualquer molde.
Esse mundo será certamente mais produtivo. Mas será também um local assustador, profundamente triste e desinteressante."