IRLANDA, EUROPA E DEMOCRACIA
E ganhou de forma clara (53.4 por cento), com a mais alta taxa de participação (53,13 por cento) dos últimos referendos europeus na Irlanda (designadamente em comparação com os dois referendos sobre o Tratado de Nice, com taxas de participação de, respectivamente, 35 e 49 por cento). A culpa não foi da abstenção. Podemos debater sobre as razões que motivaram o voto, mas devemos respeitar em absoluto a vontade democrática e soberana da maioria do povo irlandês.
Mesmo que não gostemos do resultado, mesmo que achemos que o novo Tratado, com o nome da nossa capital, Lisboa, representava um progresso necessário para a UE.
Das reacções, ainda quente, dos responsáveis europeus, parecem desenhar-se três cenários possíveis:
- criar as condições (políticas e jurídicas, mediante a negociação de novos protocolos explicativos) para a realização de um novo referendo
na Irlanda;
- seguir em frente sem a Irlanda (numa lógica de auto proclamados núcleos de vanguarda, que neste caso seria uma via extremamente perigosa e antidemocrática);
- declarar oficialmente a morte do Tratado de Lisboa (uma opinião por enquanto minoritária).
A hora deve ser de humildade e reflexão perante o funcionamento da democracia, no único país em que o povo foi chamado a pronunciar-se sobre o Tratado de Lisboa.
Não é sensato estar a dramatizar ou pessoalizar questões políticas desta gravidade. É certo que este Tratado tem Lisboa no nome, e que a presidência portuguesa cumpriu a missão da qual foi incumbida, mas a verdade é que a Europa funciona com os tratados actuais. O que se enfrenta na Europa é, antes de mais, um défice de liderança política.
E esse é um problema que nenhum tratado pode resolver. Os cidadãos europeus sentem-se cada vez mais desprotegidos face à globalização e à ameaça - muitas vezes em virtude de políticas adoptadas no seio da própria UE - às suas conquistas e direitos sociais (desde logo no emprego e na preservação da qualidade e acesso a serviços públicos essenciais).
Como já tive oportunidade de notar, este tratado não se limita a simplificar as regras de funcionamento da UE, mas altera, uma vez mais, os equilíbrios de poder no seio da União, em favor dos Estados mais populosos.
As regras são claras e iguais para todos: o tratado só entra em vigor depois de ter sido ratificado por todos os Estados membros da UE. Aplica-se o princípio da igualdade soberana dos Estados. Parece que há uns mais iguais que outros.
Não é aceitável o argumento de que um país de quatro milhões de habitantes não pode pôr em causa o futuro de 495 milhões. Os eleitores franceses e holandeses, cujo "não" em referendo esteve na origem desta crise, não foram chamados de novo às urnas. Aliás tudo se fez para evitar que isso acontecesse. Seria justo e eficaz forçar os irlandeses a Votarem de novo, até darem a resposta "correcta"?
O problema da Irlanda é um problema de todos nós. A estigmatização da Irlanda é um impulso antidemocrático e, no limite, antieuropeu. A ideia de Europa é indissociável de liberdade, tolerância e democracia.
A Europa não pode degenerar numa espécie de despotismo iluminado imposto aos povos por via burocrática, à socapa, quase às escondidas. E a Irlanda não pode ser encarada como uma nação mal comportada, que é preciso castigar por ter cometido a heresia de dar a palavra ao povo.
É preciso respeitar a vontade popular, gritava-se em 1975 nas ruas de Portugal. Pois é. E é por isso que, ainda que sendo a favor do "sim", hoje me apetece dizer: Viva a Irlanda. Porque não há Europa sem respeito pela diferença. Não há Europa sem democracia. Não há Europa contra os cidadãos.
Manuel Alegre
Vice-presidente da
Assembleia da Republica