Quarenta anos da morte de Martin Luther King
[Paulo Moura, Público.pt, 04-04-2008]
Quarenta anos depois da morte de Martin Luther King, não é fácil, hoje, perceber as razões do fascínio que exerceu sobre a América e o mundo. Só pode haver uma explicação: o seu poder não estava nele, mas em tudo o que o rodeava. É difícil perceber porque o sonho, que estava vivo, foi morrendo, primeiro com Kennedy, depois com o próprio Luther King. Mas era um sonho cheio de futuro.
Tudo começou num autocarro. Não se sabe o que passou pela cabeça da senhora Rosa Parks. Era uma costureira negra, de 42 anos, que vivia em Mongomery, Alabama. Não se sabe o que lhe passou pela cabeça naquela quinta-feira, dia 1 de Dezembro de 1955, que resolveu sentar-se na primeira fila do autocarro. O condutor, claro está, aproximou-se e disse-lhe para ir para uma das filas do fundo, porque aquele lugar estava reservado a brancos. Mas a senhora Parks fez orelhas moucas. Não se mexeu. Foi presa. O julgamento foi marcado para a segunda-feira seguinte. A senhora Parks não fazia ideia de onde se estava a meter.
Por incrível coincidência, ou talvez mera casualidade, o reverendo Martin Luther King Jr tinha sido nomeado como pastor da Igreja Baptista da rua Dexter, em Montgomery. Ele, que tinha acabado o curso do seminário em Crozer, na Pensilvânia, fora um dia a Montgomery fazer um sermão, a pedido do pai, que também era pastor. Gostaram tanto que o convidaram para ficar lá. Foi o seu primeiro emprego.
Martin era um jovem bastante enfadonho. Só pensava em estudar e levava tudo demasiado a sério. Até no amor era circunspecto: foi uma amiga que lhe sugeriu uma determinada rapariga. Deu-lhe o número de telefone dela e Martin ligou a convidá-la para almoçar. Após uma hora de conversa, o jovem reverendo disse: "Coretta, qualquer dia temos de nos casar". Meses depois casaram. Seria a única mulher da vida de Martin Luther King. Na sua autobiografia foram publicadas as suas primeiras cartas de amor. São patéticas, de tão prosaicas. Uma, de 18 de Julho de 1952, começa assim: "Querida, tenho muitas saudades tuas. Tantas, que não imaginas". Mas logo a seguir continua: "Desculpa, minha querida, não era minha intenção deixar-me arrastar por estes devaneios poéticos e românticos".
Prossegue com um relato dos livros que andava a ler e das bases da teoria económica que estava a edificar. Despede-se, com paixão: "É esta, no meu entender, a forma mais sensata e ética de operar a transformação social. Eternamente teu, Martin".
Na sexta-feira, 2 de Dezembro de 1955, um bagajeiro dos caminhos de ferro de Montgomery chamado E.D. Nixon telefonou a Martin. Contou-lhe o que se passara na véspera com a senhora Rosa Parks e acrescentou, com a voz a tremer: "Já aguentamos este tipo de situações há demasiado tempo. Acho que está na altura de boicotar os autocarros".
O reverendo era cumpridor da lei. Mas era também um homem justo. Segundo a legislação da segregação racial, os negros tinham de sentar-se nas traseiras dos autocarros. Se não houvesse vagas, teriam de ir de pé, mesmo que os lugares da frente fossem todos vazios. Era habitual os condutores tratarem os passageiros negros como "macacos pretos" e "vacas pretas".
Naquela noite, Martin não dormiu. "O método do boicote não será intrinsecamente anticristão?", ruminava ele. Mas acabou por concordar. Na manhã de segunda-feira, dia do julgamento da senhora Parks, a população negra de Montgomery, mobilizada pelos pastores e os activistas, decidiu não usar os autocarros. Foram a pé, ou de táxi, para o trabalho. A adesão ao boicote não foi de 60 por cento, como as previsões mais optimistas, mas de 100 por cento. E durou várias dias, até que as autoridades municipais decidiram negociar. O presidente da Câmara voltou-se para a delegação de negros e perguntou:
"Quem é o porta-voz?"
Não tinham combinado nada, mas todos os olhos se voltaram para Martin. O autarca disse: "Muito bem. Aproxime-se e diga o que tem a dizer".
O movimento pelos direitos cívicos começava, e Martin Luther King estava irremediavelmente ligado a ele. Não porque o tivesse desejado, mas porque não lhe pôde fugir. Menos de um ano depois, o Supremo Tribunal dos EUA declarava inconstitucionais as leis sobre a segregação nos autocarros, mas isso era só o início.
Cada conquista levaria a mais lutas e a mais resistência das forças segregacionistas. E isso levaria a uma mobilização cada vez maior, não só dos negros, mas também dos sectores mais progressistas da população branca.
Após o boicote aos autocarros, viria o movimento dos sit-ins, em que grupos de negros, principalmente jovens estudantes, entravam nas cafetarias e se sentavam. As cafetarias onde, segundo as leis da segração, não poderiam entrar. No ano de 1960, fizeram-se sit-ins por todo o Sul dos EUA, agora com a adesão, também, dos estudantes brancos. Em 1961 começa, em Albany o movimento dos "Freedom Riders": grupos de negros, em toda a espécie de veículos, ocupavam as estradas. E também os wade-ins (ocupação de piscinas e praias), os kneel-ins (ocupação de Igrejas), os jail-ins (ocupação das prisões).
Este último tipo de ocupação acontecia quando a polícia prendia tantos manifestantes nas outras ocupações, que as prisões ficavam cheias. A partir de certa altura, não era possível prender mais ninguém, porque não havia mais celas. O próprio Luther King foi preso muitas vezes, e depois libertado. Uma delas, na prisão de Birmingham, em 1963, por intervenção directa do Presidente, John Kennedy.
A marcha de Washington
Em Agosto desse mesmo ano, o movimento conseguiu uma mobilização sem precedentes numa grande marcha sobre Washington. Cerca de 250 mil pessoas reuniram-se em frente do monumento a Abraham Lincoln. Foi aí que Martin Luther King proferiu o célebre discurso. "I have a dream", disse ele. Mas isso não estava escrito. Saiu-lhe da boca como se uma força superior se tivesse apoderado dele. "Eu tenho um sonho", gritou ele, já sem olhar para o papel.
A marcha teve uma cobertura mediática inusitada. Muitos brancos americanos nunca tinham visto tantos negros juntos numa acção concertada e séria. E, no entanto, os media estavam presentes em massa porque pensaram que, com tantos negros juntos, haveria com certeza distúrbios e violência. King previu e jogou com tudo isto. Essa capacidade de chegar à opinião pública foi um dos segredos do seu êxito e, com ele, do êxito do movimento dos direitos civis. Outro segredo foi a sua formação religiosa e a competência oratória aprendida com os pastores das igrejas evangélicas negras. Outro segredo ainda foi a sua sintonia com o espírito da época.
Martin Luther King não tinha ideias revolucionárias. Ele acreditava na Constituição americana. Para ele, o fim da segregação racial e a luta pelos direitos civis eram a realização do próprio sonho americano. Não de um outro sonho qualquer. Ou do seu próprio sonho.
"A realidade da segregação, como a da escravatura, sempre teve de desafiar os ideais da democracia e do cristianismo. De facto, segregação e discriminação são paradoxos estranhos numa nação alicerçada no princípio de que todos os homens foram criados iguais", escreveu King.
Na sequência desta convicção - e esse é o mais importante segredo - King concluiu que toda a luta deveria ser pacífica. Através da experiência, mas também de muito estudo teórico, criou um método invencível de combate. Foi uma mistura do ensaio Sobre a Desobediência Civil de Henry David Thoreau, com a teses sobre a responsabilidade social do Cristianismo, de Walter Raushenbusch. A seguir, influenciaram-no a obra de Marx e a experiência de Ghandi, o Super-homem de Nietzsche e a ética social de Reinhold Niebuhr. No fim, estava completa e pronta a usar uma filosofia de combate não-violento que ia de encontro ao espírito de mudança e de pacifismo que se espalhava pelo mundo nos anos 60.
Quando ganhou o Nobel da Paz, em 1964, King interpretou-o como um "reconhecimento de que a via da não-violência, a via do negro americano, era a resposta à questão política e moral mais premente do [nosso] tempo: a necessidade que o homem tem de vencer a opressão e a violência sem recorrer à violência e à opressão".
Este era o sonho que a América sonhava e, com ela, o mundo. Martin Luther King limitou-se a plagiar o sonho.
No discurso do Verão de 63, em Washington, era como se alguém estivesse a falar pela sua boca. Ele tinha escrito um belo texto e começou a lê-lo. "Sinto-me feliz por estar hoje aqui convosco naquela que irá ficar na História da nossa nação como a maior manifestação pela liberdade", começou ele. "Chegou a hora de cumprir as promessas da democracia", leu ainda. Mas depois ergueu os olhos do papel e nunca mais os baixou. "Eu tenho um sonho", começou ele a improvisar. "Um sonho que mergulha profundamente as suas raízes no sonho americano". E entrou em puro transe. Não era ele que discursava. O sonho não era dele. Como um medium que fecha os olhos e fala com vozes do passado, ele fitava a multidão e falava com a voz do futuro.