Culturas de Greve em Portugal e no Brasil
Elísio Estanque
Centro de Estudos Sociais da FEUC;
Professor convidado da USP – São Paulo
Portugal está em greve e o mesmo acontece no sector universitário paulista. A greve é, disseram uns sociólogos citando Clausewitz, “a continuação da negociação por outros meios”. Acho que esta é uma formulação adequada, sobretudo quando as greves ocorrem num regime democrático, no qual é suposto uma permanente negociação de interesses entre os diferentes actores do conflito social e político. É de conflito que se trata. Mas tal como o conflito não acaba com o fim da greve, a negociação não pode acabar com o seu início. A negociação continua por outros meios, na medida em que o conflito aberto trata sobretudo de mostrar o peso relativo de cada uma das partes nele envolvidas, procurando alterar a correlação de forças. E as paralisações do trabalho mais as manifestações de rua têm um custo não só económico mas também político que pode ser demasiado elevado.
Em Portugal, desde os anos 70 que as greves se foram tornando impopulares. Quer no discurso público quer no imaginário popular foi-se instalando a ideia de que só fazem greve os que “não gostam de trabalhar”, os que só pensam nos seus interesses, supostamente indiferentes aos “interesses do país”. Passámos por um período em que a cultura de greve se inscrevia numa expectativa colectiva de que a greve era parte de um processo mais vasto, era uma etapa da consciencialização, visando a sociedade socialista, que estaria no final do caminho. Só que, entretanto, foi a utopia que se perdeu no caminho e a greve passou a limitar-se à defesa de regalias materiais. Porém, quem tinha mais passou a estar menos disposto a aderir, e as greves não só passaram a mobilizar menos como se foram limitando aos sectores mais protegidos.
A cultura de greve deixou de ser emancipatória para se tornar corporativa. Com tudo isto chegámos a um ponto em que se bateu no fundo. Ou seja, os sectores estáveis, a que alguns chamaram “privilegiados”, deixaram de o ser e estão todos a tornar-se precários. Este é talvez o ponto em que, outra vez, os que antes pensavam só em si próprios percebem a importância da aliança com os restantes, e os mais precarizados começam a perceber que a cultura do “deixem-nos trabalhar”, o sacrifício necessário para garantir o mínimo de bem-estar ou mesmo para “salvar o país da crise”, não passou de um imenso logro. O benefício da dúvida que muitos deram a Sócrates há dois anos não valeu a pena.
Também no Brasil o rastilho das greves e do protesto parece ter pegado. No início parecia uma brincadeira de crianças. Há quase um mês que os estudantes ocupam a Reitoria da USP em protesto pela quebra abrupta da negociação com a reitora e em luta contra um conjunto de decretos do governo de José Serra, que visam reduzir a autonomia da universidade e talvez empurrar a instituição – a melhor do país – para um processo de privatização a prazo. Pouco depois, os funcionários declararam greve, seguindo-se-lhes os professores. Piquetes, paralisações e até invasões já se estenderam a várias instituições e têm ocorrido manifestações noutras regiões do país. Em São Paulo também os funcionários das Universidades Federais entraram agora em greve. O governador J. Serra dá sinais de hesitação e de recuo. Os grandes média começam a vacilar na sua habitual postura contra a “violência” de quem protesta. As reuniões negociais continuam, aparentemente sem sucesso. E na USP vive-se um “Maio de 2007”, que faz lembrar o de 68, em que a “cultura de greve” é parte do programa de actividades culturais da Reitoria ocupada desde 3 de Maio. Com as aulas paralisadas, os universitários, cunhados de radicais “desordeiros”, estão a dar uma lição às forças organizadas e aos partidos que se acoitam no poder.
O que há, afinal, aqui em comum? Há dois governos que era suposto serem de esquerda e estão a fazer a política do capital e de desprezo pelos que trabalham. De ataque ao Estado e em prol do privado. No caso, é o do Estado de São Paulo que está na berlinda, mas, ao fim e ao cabo, PT e BSDB são agora também aliados no governo central. No Brasil a precariedade é estrutural e as diferenças partidárias são cada vez mais indestrinçáveis. Em Portugal parece que seguimos o mesmo rumo. No momento espera-se que, num e noutro caso, as greves mostrem a importância fundamental da negociação – e do conflito – em democracia. Porque as democracias formais e os tecno-burocratas que as governam não chegam para resolver os problemas.